quinta-feira, 17 de março de 2016

3ª Aula de Filosofia 3º Ano Ensino Médio

Ética utilitarista de Jeremy Bentham

INTRODUÇÃO

O jurista Jeremy Bentham preferiu o estudo da teoria do Direito em lugar de exercer a profissão de advogado. Além disto, era economista e filósofo que chefiou um grupo de pensadores ingleses, entre os séculos XVIII e XIX, que ficou conhecido como grupo de radicais filosóficos ou “utilitaristas”. Seus componentes pregavam por reformas políticas e sociais, entre elas uma nova constituição para o país, que foi alcançado no ano da morte de Bentham.

“A primeira lei de natureza, para Bentham, consistiria em buscar o prazer e evitar a dor, sendo necessário para alcançar tal escopo que a felicidade pessoal fosse alcançada pela felicidade alheia. (...) A solução para encontrar a cooperação entre os homens, ele a aponta na e identificação de interesses, factível através da atividade legislativa do governo”.[1]

Os membros desta corrente trabalhavam em vista do mesmo fim, e assim seus componentes uniram-se na reverência a seu mestre: Jeremy Bentham. Estes “radicais” propuseram uma modificação no panorama filosófico e científico. As teorias defendidas em comum e aplicadas a vários campos, tanto no social como no humano formaram uma doutrina que se sobrepôs às escolas cartesianas e kantianas, pensamento predominante na época.

OBJETO

O ponto de partida de sua doutrina foi seus estudos sobre a ciência do direito, concentrado no jusnaturalismo. Sua teoria dizia que o pacto entre os membros de uma sociedade deveria necessariamente ser feito um contrato anterior (original). Partindo desta premissa, sustenta que se a autoridade suprema não cumpre suas obrigações para com os súditos, ainda assim a obediência deve prevalecer.

“Se a justiça é, falando em sentido estritamente jurídico, o comportamento não arbitrário imposto mediante o sistema legal positivo, e então a justiça se funda na utilidade, posto que não há nada mais útil para a conservação da coesão social e para o desenvolvimento da vida coletiva que a conduta não arbitrária (no fundo, a teoria de Hobbes e Hume”).[2] A doutrina constituída acerca do direito natural dizia ser insatisfatória, e por duas razões: diante da não possibilidade histórica de constatar a existência de tal contrato; e mesmo provando ser verossímil isto, ainda permanece a pergunta sobre por que os homens são obrigados a cumprir compromissos em geral. Sua visão, as únicas respostas possíveis são as vantagens que o contrato proporciona a sociedade.

Para Bentham o cidadão deveria obedecer ao Estado na medida em que a felicidade geral viria como sua contribuição (obediência). Esta felicidade geral ou interesse da comunidade em geral, seria como “uma equação” hedonista, isto é, uma soma dos prazeres e dores dos indivíduos. Assim, a teoria do direito natural é substituída pela teoria da utilidade, e o principal significado dessa transformação é a passagem de um mundo fictício para o mundo dos fatos (real). É no mundo empírico, afirma Bentham, que é possível a verificação de uma ação ou instituição, sua utilidade ou não. O direito de livre discussão na crítica é constituída pelo que é necessário em primeiro plano.

PARADIGMA

Note-se que Jeremy Bentham não se deteve somente à análise teórica das ideias sobre o homem como ser social e moral. Toda a sua estrutura doutrinária procurou a aplicabilidade prática, dedicando-se a concepção da legislação de acordo com princípios naturais no ser humano, buscando a codificação das leis com o intuito de tornar acessível por qualquer pessoa.

Em sua obra intitulada “Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação” teve como principal objetivo materializar seu principal ponto de vista com uma grande carga axiológica. Bentham expôs de maneira pormenorizada efetiva aplicação do princípio da utilidade, como fundamento de toda a conduta social e principalmente individual. Inicialmente, se verifica a indagação dos sentimentos em uma escala de preferência, onde o valor atribuído é levado em consideração o prazer que oferece nas circunstâncias geradas. Na parte subsequente do livro, são expostas outras opções que poderiam induzir o homem a promover ações criadoras de felicidade (os castigos e recompensas), adicionado os motivos determinantes e seus respectivos valores morais.

Bentham em sua trajetória contou com a colaboração de vários seguidores do utilitarismo, formando uma escola de renovação de ideias. Entre estes, estavam o filósofo James Mill e seu filho John Stuart Mill.

ESSÊNCIA DO UTILITARISMO

O entendimento da teoria proferida por Bentham e sustentada por seus seguidores era que para a interpretação da norma deveria levar em consideração os efeitos reais produzidos. A qualificação dos efeitos teria como base a utilidade, sendo o bom aquilo que traz prazer e mau, o que causa dor. Complementando esta frase, sob o prisma social bom e justo é tudo aquilo que tende a aumentar a felicidade geral.

”O universalismo &eacutetico, ou o que se chama habitualmente utilitarismo, sustenta a posição segundo a qual o fim o último é o maior bem geral - que um ato ou regra de ação é correto se, e somente se, conduz ou provavelmente conduzirá a conseguir-se, no universo como um todo, maior quantidade de bem relativamente ao mal do que qualquer outra alternativa; é errado o ato o regra de ação quando isso não ocorrer e é obrigatório, na hipótese de conduzir ou de provavelmente conduzir a obtenção no universo, da maior quantidade possível de bem sobre o mal[3]

Para quantificar as vantagens e desvantagens foram criadas teorias sobre o método valorativo e causa social, evidenciando que a função do jurista seria então calcular as vontades lícitas, levando em consideração as fórmulas para conciliar os interesses individuais formando um só coletivo.

Seu ponto de partida foi a crítica ao legalismo da escola analítica de jurisprudência[4], pois o lema é a maior felicidade para o maior número de pessoas. Tal é a ética hedonista, justamente o que proporciona prazer é bom e evitar o sofrimento, é este o objetivo do utilitarismo.

SUA FILOSOFIA

Acreditou que uma melhoria gradual do nível de instrução da sociedade, os povos seriam mais corretos acerca da decisão em escolher a base do cálculo racional para seu próprio benefício em longo prazo, e consequentemente tomar a decisão mais justa que tendesse cada vez mais a promover a felicidade geral.

Nesta linha de pensamento, as leis devem ser socialmente úteis e não meramente para refletir algo abstrato. Acredita que quando os homens perseguem o prazer e evitam a dor, Bentham chamou esse procedimento de “a true sacred” (uma verdade absoluta).

Supôs ainda que toda a moralidade poderia ser derivada do “self-interest enlightened” em que uma pessoa que agissem sempre com vista a sua própria satisfação máxima ao longo prazo agiria sempre conforme o direito.

MÉTODO QUANTITATIVO “CÁLCULO” - "HEDONIC CALCULATION"

Como dito anteriormente, o método designado para definir a quantidade (valor) das condutas foi dado o nome de “cálculo”. Apesar do termo, que não está muito distante de uma fórmula matemática, de onde consiste em uma engenhosa classificação das espécies de ações, uma valoração de cada ato praticado por cada membro da sociedade.

“Mas o cálculo dos efeitos ou consequências não é uma tarefa fácil, ainda que se faça com unidades numéricas, como pretendia Bentham nos seu famoso “cálculo hedonista”, no qual as unidades de bem eram unidades de prazer.”[5]

ÉTICA

Este conjunto de padrões morais depende da sua obrigação - indivíduo - em relação a si mesmo. No momento em que se constrói um sólido conjunto normativo, teremos a capacidade de afetar a felicidade de outros que nos rodeiam: “A ética privada tem por objetivo a felicidade, sendo este também o da legislação. A ética privada diz respeito a cada membro, isto é, à felicidade e as ações de cada membro, de qualquer comunidade que seja; a legislação, por sua vez, tem a mesma meta” [6]

O segundo passo é a harmonização da ética privada. Quando há compatibilidade de felicidades individuais, estaremos diante de um objetivo comum. Convertendo este saldo positivo, nos encontramos no âmbito máximo da conveniência coletiva.

MORAL X MORALIDADE

Tanto o conjunto de princípios, valores e prescrições que os homens, de uma dada sociedade, consideram validos como os atos reais em que aqueles se concretizam ou encarnam. É necessário ter sempre presente a distinção entre o plano puramente normativo (o ideal), e o factual (real ou prático), estabelecendo dois termos para designar respectivamente cada plano: moral e moralidade.

A moral seria a designação de um conjunto de princípios, normas, imperativos ou ideias morais de uma época ou de uma sociedade determinada, ao passo que a moralidade se refere ao conjunto de relações efetivas ou atos concretos que adquirem um significado moral com respeito a “moral” vigente.

A finalidade da ação humana é um “padrão” de moralidade. Por sua vez, a moralidade é estabelecida como sendo as regras e preceitos norteadores da conduta humana que venha a ter efeitos perante a comunidade, considerando seu conjunto de interesses individuais. Podemos então afirmar que a diferença entre a moral e moralidade corresponde assim àquela indicada entre a norma e o fato e, como esta não pode ser negligenciada, a tendência é da moral transformar-se em moralidade, pois a exigência da realização na essência do próprio normativo; a moralidade é a moral em ação, a moral prática e praticada.

Contribuição de John Stuart Mill

“A utilidade ou o princípio da maior felicidade, como fundamento da moral, sustenta que as ações são certas na medida em que elas tendem a promover a felicidade e erradas quando tendem a produzir o contrário da felicidade. Por felicidade entende-se prazer e ausência de dor, por infelicidade, dor e privação do prazer”.[7]

A diferença para Bentham na sua exegese é a definição exata do termo “felicidade”, para Stuart Mill o prazer não se restringe ao quantitativo do comensurável pela duração e intensidade. Ainda este quantitativo dos prazeres inferiores e superiores estão presentes não apenas no racionalismo à maneira de Bentham, mas as percepções da alma humana realçada pelo romantismo. O fundamental é a afirmação da capacidade do ser humano de exercer a liberdade, escolhendo e decidindo entre o bem e o mal.

Escolhendo entre aquilo que é certo ou errado, o utilitarismo não configura a análise do ser virtuoso, mas aquilo que ele faz ou deixa de fazer. Esta teoria teve um forte impacto nas decisões coletivas, pois buscou em gravar um sentido de direção voltado para o bem-estar da sociedade. E por esta razão, desde a gênese do utilitarismo idealizado por Bentham esta “escola” está vinculada ao reformismo e o progresso. Toda sua estrutura está voltada a eliminar os males, a começar pelo sofrimento. Aparentemente o critério se constitui a base da teoria utilitarista não é a felicidade individual nas a multiplicação da felicidade na maior amplitude possível.

JUSTIÇA SOCIAL

Diante do conceito comum do bem e do mal, é necessário um juízo de valor que possa efetivamente abranger todas as condutas individuais, classificando-as e definindo a graduação perante o conjunto social. O utilitarismo utilizando o clássico critério “meritório” na justiça, que aparece em Aristóteles. “De acordo com este ponto de vista, o critério do mérito é a virtude, e a justiça consiste em distribuir o bem (felicidade) tendo em conta a virtude.”[8] Sob uma segunda visão, igualitarista (que surge na teoria democrática) onde o ser é considerado abstratamente, independentemente de suas particularidades. Por fim, a terceira corrente é a contribuição do conceito marxista: “de cada um, de acordo com sua capacidade; a cada um, de acordo com suas necessidades”.

Na busca do ideal de justiça, sua teoria também colocou algumas responsabilidades para o Estado. A primeira obrigação consiste em não deixar povos sofrerem necessidade. Isto significa de garantir um nível de subsistência mínima, renda para assegurar a sobrevivência de todos os cidadãos e a provisão da segurança aos indivíduos.

A segunda obrigação estatal é incentivar a abundância, de riqueza e a população. Se a riqueza for constante, a seguir uma população mais grande reduzirá a riqueza per capita. Entretanto, Bentham acreditou que uma população abundante é necessária para a defesa. Em toda a taxa, pelo princípio de diminuir a utilidade “marginal” e soma direta da utilidade, uma população grande embora pobre pôde ter "uma utilidade agregada mais elevada" do que uma população pequena e abastada.

A terceira obrigação é a igualdade dos meios. Pelo princípio de diminuir a utilidade marginal, um determinado percentual de felicidade contribui menos para a utilidade de um homem rico do que faz a um pobre. Consequentemente, a localização da renda para determinar a igualdade é por mais desejável que a perda de serviço público dos ricos seja mais do que compensada pelo ganho de serviço público dos pobres.

CONCLUSÃO

A teoria do utilitarismo visa a maior felicidade, não do próprio agente, mas a maior felicidade ao maior número de pessoas envolvidas "the greatest happiness for the greatest number". Também é defendida a nobreza de caráter, avaliada e classificada de acordo com extensão de seus efeitos ao bem comum.

O comportamento moral manifesta-se na forma de hábitos e costumes. O objetivo do estudo foi a influência deste fato na confecção da legislação, desde a motivação, sua vigência e eficácia (efetividade). Insistindo que os indivíduos são os melhores juízes de sua própria felicidade, Bentham teve uma tendência automática em optar pelo ideal da não interferência por parte do governo. Entretanto, reconheceu que as ações individuais de um indivíduo implicaram frequentemente na felicidade de outro e que os indivíduos não podem ter o incentivo ou a habilidade de coordenar as ações que melhoram a utilidade agregada.

Referências bibliográficas

BACQUE, Jorge A. Derecho, filosofia y lenguaje. Buenos Aires: Astrea, 1976
BENTHAM, Jeremy. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução a ciência do direito. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
FRANKENA, Willian K. Etica. Rio de Janeiro : Zahar, 1969. 143p. (Curso moderno de filosofia). Traducao de Ethics.
FREITAS, Juarez. As grandes linhas da filosofia do direito. Caxias do Sul: UCS, 1986.
MILL, John Stuart. O utilitarismo. São Paulo: Iluminuras, 2000.
SANCHEZ VASQUEZ, Adolfo. Ética. 14. ed. Rio de Janeiro: Civilizacao Brasileira, 1993.

Notas:
[1] FREITAS, Juarez. As grandes linhas da filosofia do direito. Caxias do Sul : UCS, 1986. p.44
[2] BACQUE, Jorge A. Derecho, filosofia y lenguaje. Buenos Aires: Astrea, 1976. xvi, 235p. (Coleccion mayor. Filosofia y derecho, 3). p.123
[3] FRANKENA, Willian K. Etica. Rio de Janeiro : Zahar, 1969. 143p. (Curso moderno de filosofia). Traducao de Ethics. p.30-31
[4] Juristas dos países onde o sistema judiciário é o common law, especificamente criado por Austin e Salmond, vieram a admitir o fetichismo dos textos e a função mecânica da atividade judicial, induzindo a adoção de processos lógico-analíticos na integração aplicação e interpretação do direito costumeiro e do direito derivados das decisões da Corte da chancelaria.
[5] SANCHEZ VASQUEZ, Adolfo. Ética. 14. ed. Rio de Janeiro : Civilizacao Brasileira, 1993. p. 174
[6] BENTHAM, Jeremy. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979 p.65
[7] MILL, John Stuart. O utilitarismo. São Paulo: Iluminuras, 2000. Tradução de: The utilitarism. p.49
[8] FRANKENA, Willian K. Etica. Rio de Janeiro : Zahar, 1969. 143p. (Curso moderno de filosofia). Traducao de Ethics. p.62

A ética de John Stuart Mill

1. O princípio da maior felicidade

O utilitarismo é um tipo de ética consequencialista. O seu princípio básico, conhecido como o Princípio da Utilidade ou da Maior Felicidade, é o seguinte: a ação moralmente certa é aquela que maximiza a felicidade para o maior número. E deve fazê-lo de uma forma imparcial: a tua felicidade não conta mais do que a felicidade de qualquer outra pessoa. Saber por quem se distribui a felicidade é indiferente. O que realmente conta e não é indiferente é saber se uma determinada ação maximiza a felicidade. Saber se a avaliação moral de uma ação a partir do Princípio da Maior Felicidade depende das consequências que de facto tem ou das consequências esperadas é um aspecto da ética de Mill que permanece em aberto.
Apesar de haver pessoas que não o aceitam, o princípio básico dos utilitaristas é hoje central nas disputas morais. Mas há cento e cinquenta anos foi uma ideia revolucionária. Pela primeira vez, filósofos defendiam que a moralidade não dependia de Deus nem de regras abstractas. A felicidade do maior número é tudo o que se deve perseguir com a ajuda da experiência. Isto explica que os utilitaristas tenham sido reformadores sociais empenhados em mudanças como a abolição da escravatura, a igualdade entre homens e mulheres e o direito de voto para todos, independentemente de deterem ou não propriedade.

2. O que é a felicidade?

Mill tem uma perspectiva hedonista de felicidade. Segundo esta perspectiva, a felicidade consiste no prazer e na ausência de dor. O prazer pode ser mais ou menos intenso e mais ou menos duradouro. Mas a novidade de Mill está em dizer que há prazeres superiores e inferiores, o que significa que há prazeres intrinsecamente melhores do que outros. Mas o que quer isto dizer? Simplesmente que há prazeres que têm mais valor do que outros devido à sua natureza. Mill defende que os tipos de prazer que têm mais valor são os prazeres do pensamento, sentimento e imaginação; tais prazeres resultam da experiência de apreciar a beleza, a verdade, o amor, a liberdade, o conhecimento, a criação artística. Qualquer prazer destes terá mais valor e fará as pessoas mais felizes do que a maior quantidade imaginável de prazeres inferiores. Quais são os prazeres inferiores? Os prazeres ligados às necessidades físicas, como beber, comer e sexo.
Diz-se que o hedonismo de Mill é sofisticado por ter em conta a qualidade dos prazeres na promoção da felicidade para o maior número; a consequência disso é deixar em segundo plano a ideia de que o prazer é algo que tem uma quantidade que se pode medir meramente em termos de duração e intensidade. É a qualidade do prazer que é relevante e decisiva. Daí Mill dizer que é preferível ser um "Sócrates insatisfeito a um tolo satisfeito". Sócrates é capaz de prazeres elevados e prazeres baixos e escolheu os primeiros; o tolo só é capaz de prazeres baixos e está limitado a uma vida sem qualidade. Mas será que é realmente preferível ser um "Sócrates insatisfeito"? Mill afirma que, se fizéssemos a pergunta às pessoas com experiência destes dois tipos de prazer, elas responderiam que os prazeres elevados produzem mais felicidade que os prazeres baixos. Todas fariam a escolha de Sócrates.
Há filósofos que consideram a distinção entre prazeres inferiores e superiores incompatível com o hedonismo. Se, como afirma o hedonismo, uma experiência vale mais do que outra apenas em virtude de ser mais aprazível, ao aumentarmos progressivamente a aprazibilidade do prazer inferior, chegaremos a um ponto em que este pesará mais do que um prazer superior na balança dos prazeres; e nesse caso, se quisermos manter o hedonismo, a distinção entre prazeres inferiores e superiores deixará de fazer sentido e terá de ser abandonada. Convido-te a imaginar que resposta poderá ser dada a esta objeção em defesa da ética de Mill.

3. A defesa de Mill do princípio da maior felicidade

A prova de Mill do Princípio da Maior Felicidade consiste num argumento que parte da analogia entre visibilidade e desiderabilidade. Podemos reconstruí-lo da seguinte maneira:
  1. Ver uma coisa prova que ela é visível.
  2. Logo, desejar uma coisa prova que ela é desejável.
    A seguir a esta conclusão afirma-se:
  3. A única coisa que cada pessoa deseja como fim último é a sua própria felicidade.
  4. Logo, a única coisa que é desejável como fim último para cada pessoa é a sua própria felicidade.
    Da conclusão afirmada em 4 resulta uma outra:
  5. Logo, cada pessoa deve realizar as acções que promovem a maior felicidade.
Que avaliação podemos fazer deste argumento? Desde logo, é provável que vejas o seguinte problema: 1 não é uma razão para aceitar 2; se podes ver uma coisa, isso significa que ela é visível; mas se podes desejar uma coisa, isso não significa que ela seja desejável, isto é, que deva ser desejada. Por que razão a analogia não resulta? Porque o conceito de visibilidade é um conceito descritivo enquanto o conceito de desiderabilidade é um conceito normativo.
Vejamos agora a premissa 3. Trata-se de uma premissa falsa ou pelo menos bastante duvidosa. Dizer que a felicidade é o fim último de cada pessoa significa que tudo o que as pessoas desejam é um meio para assegurar esse fim. Se desejares que as crianças sujeitas a maus-tratos recebam amor e protecção, Mill diz que queres isto como um meio para assegurar a tua felicidade. Mas a verdade é que o bem-estar dos outros tem uma importância que não depende da importância que dás à tua felicidade. Como ninguém pode negar que muitas pessoas têm preferências deste tipo, a premissa 3 é falsa. Por outro lado, pessoas deprimidas parecem por vezes não desejar a sua própria felicidade.
E o que dizer do raciocínio que conclui 4 a partir de 3? Se reparares bem, verás que é o mesmo tipo de raciocínio que conclui 2 a partir de 1. Logo, o problema que levanta é o mesmo. Do facto de desejares como fim último a tua própria felicidade não se segue que a coisa mais desejável para ti é veres os teus desejos satisfeitos. Isso depende do tipo de desejos que tens. Se tiveres desejos violentos, o melhor para ti é abandoná-los.
De qualquer modo, imagina que 4 é verdadeira. Será que daí se pode concluir 5? Mesmo que a tua felicidade seja a coisa mais desejável para ti, isso não implica que deves maximizar a felicidade geral. Em certas circunstâncias, a felicidade dos outros exige que sacrifiques a tua felicidade, e não que a persigas. Acresce que 5 parece contradizer 3. Ao dizer de maneira descritiva, e não normativa, que cada um deseja apenas a sua felicidade, 3 exprime um egoísmo psicológico; e nesse caso, como os seres humanos de facto apenas podem desejar a sua própria felicidade, segue-se que não lhes é possível ter como fim a felicidade geral. Logo, se de todo não podem ter como fim a felicidade geral, é absurdo dizer que o fim último é maximizar a felicidade geral.
Há filósofos que vêem uma maneira de defender o argumento de Mill deste ataque devastador. O erro de deduzir que uma coisa é desejável a partir do facto de ser desejada é demasiado elementar para ser o que realmente está em jogo no argumento. Para eles, Mill simplesmente consultou os nossos desejos para ver que coisas são desejáveis. O facto de haver homens que desejam acima de tudo a felicidade e não vêem nisso nada de errado é apenas um indício a favor da ideia de que a felicidade é desejável como fim último. Nada mais. Assim, Mill teria o objectivo mais modesto de apresentar uma boa razão a favor do Princípio da Maior Felicidade, e não uma prova que o garantisse.

4. Algumas objeções

As objeções que irás considerar têm uma estratégia em comum. A ideia é partir dos juízos que fazes acerca de casos particulares. Se esses juízos afirmam que uma acção é errada e a ética de Mill implica que é certa, terás indícios para defender que a teoria é falsa.

A objeção da máquina de experiências

Esta objeção foi formulada pelo filósofo Robert Nozick. Imagina que tens à tua disposição um computador capaz de te fornecer todas as experiências que mais desejas. Passarás a ser uma pessoa absolutamente feliz e não alguém que ora sente alegria e entusiasmo pela vida, ora tristeza e tédio. A tua felicidade não terá interrupções. Mas tens de escolher entre ligar-te à máquina de experiências ou prosseguir a vida que já tens. Lembra-te que, se o fizeres, poderás viver a ilusão de seres, por exemplo, um ídolo pop, um revolucionário que transforma o mundo num lugar perfeito ou até um jogador de futebol milionário, informado e com gosto. Qual é a tua escolha?
Se o utilitarismo de Mill for verdadeiro, a escolha certa é estabelecer a ligação à máquina. Mas muito provavelmente não vais ser capaz de esquecer o valor que tem o facto de viveres uma vida real e dar o salto para a doce ilusão. Parece claro que fazer certas coisas tem valor para além do sentimento de felicidade que produz em ti. Não queres perder a autonomia e a realidade de fazer as coisas. Isto é eticamente crucial e está acima da felicidade.

A objeção da justiça

Um crime horrível ocorreu numa cidade. O chefe da polícia descobriu que o assassino está morto. Todavia, ninguém acreditará nele caso apresente os indícios conclusivos que tem em sua posse. O estado de pânico na cidade é incontrolável. Rapidamente um suspeito terá de ser julgado e condenado. Se tal não acontecer, revoltas semearão o caos e a violência. Haverá certamente mortos e feridos.
Estava o angustiado chefe da polícia a pensar no caso e eis que entra no seu gabinete um desconhecido que lhe diz vaguear pela cidade e não ter relações ou amizades que o prendam ao mundo. O chefe da polícia tem de repente a solução para o caso. Por que não prender o vagabundo solitário e manipular as provas de maneira a que ele seja julgado, condenado e executado, uma vez que a lei estabelece a pena de morte para casos do género? Ninguém saberá o que de facto se passou. Se for esta a opção, morrerá uma pessoa mas a vida e o bem-estar de outras serão preservados. A consequência será claramente mais felicidade para o maior número. Ora, se o utilitarismo for verdadeiro, esta é a opção certa. Mas será esta a opção justa? Não haverá aqui um conflito muito sério entre o padrão utilitarista e o valor da justiça? Se para ti o valor da justiça é mais importante que o Princípio da Maior Felicidade, verás nesta história uma razão para rejeitar o utilitarismo de Mill.

A objeção da integridade

Esta objeção foi formulada por Bernard Williams, um importante filósofo moral. As histórias em que se baseia poderiam passar-se contigo. Os dilemas que elas apresentam são genuínos e não deixam pessoa alguma indiferente.
George fez um doutoramento em química mas não tem emprego. A sua saúde frágil limita as opções de trabalho. Tem dois filhos. É o trabalho da sua mulher que garante a subsistência de uma família que vive dificuldades e tensões. Os filhos ressentem-se de tudo isto e tomar conta deles tornou-se um problema. Mas um dia um químico mais velho propõe-lhe um emprego num laboratório que faz investigação em guerra química e biológica. George é contra este tipo de guerra. Já a sua mulher nada vê de incorrecto na investigação em questão. Quer aceite quer não, a investigação prosseguirá. George não é realmente necessário.
Os acasos de uma expedição botânica atiram Jim para o centro de uma aldeia sul-americana. De repente, vê à sua frente uma série de homens atados e alinhados contra uma parede. Estão prestes a ser fuzilados. Mas tudo dependerá de Jim. Por cortesia, o capitão que comanda as operações concede a Jim o privilégio de matar um dos índios. Se o fizer os outros serão libertados. Se recusar a proposta, todos os índios morrerão.
Segundo a teoria moral de Mill, George deve aceitar o emprego e Jim deve matar o índio. Não se trata apenas de dizer que nada há de errado nisso, mas de afirmar que essas são as opções correctas. E óbvias. Mas será que são realmente correctas e óbvias? Serão as considerações utilitaristas as únicas relevantes para tratar destes casos? Se a tua resposta for não, é porque te sentes especialmente responsável não só pelo que és, mas também pelo que deves ser, pelo tipo de pessoa que deves ser. E nesse caso é a tua integridade que está em jogo. Se admitires que uma teoria ética não pode limitar-se a ponderar consequências e terá de incluir considerações sobre o tipo de pessoa que devemos ser, o utilitarismo de Mill é claramente insatisfatório.

Conclusão

Estas e outras objeções obrigaram o utilitarismo a modificações significativas. Depois de século e meio de debate, o utilitarismo é hoje uma teoria mais sofisticada. Apesar de recusado por muitos, continua a ser influente e indispensável nas disputas morais. Também tu terás de tomar posição e avaliar os méritos e problemas da teoria. Considera de seguida alguns dos méritos apontados à teoria.

Simplicidade

Curiosamente, alguns filósofos vêem no utilitarismo a simplicidade indispensável para tratar de casos complexos. Se pensares em problemas como o da Palestina, verás que a sua discussão política apela a conceitos morais como os de "dever", "direitos", "obrigações" e "culpa" e faz juízos morais sobre o carácter das pessoas, o que é sempre delicado. Ao ignorar as complicações que daqui resultam, o utilitarismo pode olhar para o futuro e perguntar simplesmente: Que opções são realizáveis? Para cada uma das opções realizáveis, quantas pessoas beneficiarão e quantas sofrerão? E quanto? Não é que as respostas a estas questões sejam fáceis. Todavia, é inegável que as questões são simples e claras.

Naturalismo

Direitos humanos, regras absolutas, mandamentos divinos, princípios abstractos podem ser centrais para muitas pessoas, mas os problemas de saber o que são realmente e que conexão têm com as nossas vidas são difíceis. Ora, o prazer e a dor que estão na base do utilitarismo são, por contraste, bem reais na nossa vida. Ninguém parece ter dúvidas acerca disso. Daí que o utilitarista perante perguntas do género "A moralidade é acerca de quê?", "Tem alguma coisa a ver com o mundo?", responda tranquilamente que é acerca do prazer e como alcançá-lo e acerca da dor e como evitá-la.

Pesar o prazer e a dor

Como o utilitarismo tem de pesar as boas e as más consequências umas em relação às outras e essa avaliação pode depender de detalhes subtis, poucas são as regras gerais que ele aprova. Regras como "Não mates", "Não mintas" ou "Cumpre promessas" até podem aplicar-se em muitos casos, mas por vezes são maneiras de fugir às questões e de evitar pensar seriamente sobre elas. Quebrar promessas ou matar ocasionalmente pode parecer geralmente repulsivo, mas há alguns casos em que parece intuitivamente correcto quebrar promessas ou matar.
O utilitarista defende que a única coisa valiosa é estados mentais de felicidade, e que a ação correta é aquela que faz pender a balança do prazer e da dor para o lado do prazer. Desse modo, não há lugar para conflitos de valor no seu interior e tomar decisões morais parece mais simples.

Questões de revisão

  1. Qual é o princípio básico da ética de Mill?
  2. O que significa dizer que é indiferente saber como se distribui a felicidade?
  3. Terá o princípio básico do utilitarismo de Mill alguma coisa a ver com o facto de ele ter sido um reformador social? Porquê?
  4. Qual é, segundo Mill, a coisa que tem mais valor na vida de cada um de nós?
  5. "Mais vale passar a vida a ver televisão com um saco de pipocas na mão do que passar a vida a apreciar a música de Schubert." Mill concordaria com a afirmação? Porquê?
  6. Será que desejar uma coisa a torna desejável? Porquê? Dá exemplos.
  7. Por que razão a afirmação 3 do argumento é falsa?
  8. Será que a afirmação 5 do argumento se segue da 4? Porquê?
  9. Que defesa pode ser feita do argumento a favor do Princípio da Maior Felicidade?
  10. O que mostra a objecção da máquina de experiências?
  11. Que consequência tem a objecção da justiça?
  12. O que mostra a objecção da integridade?
  13. Segundo alguns filósofos, o utilitarismo de Mill tem o mérito da simplicidade. Porquê?
  14. "Um dos méritos do utilitarismo é ele ser menos abstracto do que outras teorias." Concordas? Porquê?

Questões de discussão

  1. O utilitarismo não dá lugar a conflitos de valor. Isso será uma vantagem ou desvantagem?
  2. A teoria moral de Kant defende que os homens são fins em si. Será que esta ideia pode corrigir alguns defeitos do utilitarismo? Justifica.
  3. "O utilitarismo é uma teoria que na prática não funciona porque é impossível estar a avaliar cada caso em particular." Concordas? Porquê?
  4. "A moralidade de senso comum é utilitarista. As regras em que se baseia resultam do facto da experiência mostrar que assim as pessoas são mais felizes." Concordas? Porquê?
  5. Será que um Sócrates insatisfeito conhece realmente os prazeres do tolo satisfeito? Justifica.
  6. Imagina que um utilitarista estabeleceu algumas regras gerais para não ter de estar sempre a pensar caso a caso. Como chegou ele a essas regras? Através de raciocínios a priori, isto é, que não se baseiam na experiência, ou através da experiência?
  7. Discute a seguinte afirmação: "Há casos em que a coisa certa a fazer não é aumentar a felicidade do maior número mas diminuir a dor de uma só pessoa".
  8. "Quando se trata de tomar decisões morais, nada mais conta para além das consequências." Concordas? Porquê? O que conta realmente para ti?

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