sexta-feira, 19 de novembro de 2010

CONCEITO DE SOCIEDADE, SOCIEDADES CULTURAIS E SUAS INFLUÊNCIAS NA CIÊNCIA MODERNA NOS SÉCULOS XVII E XVIII, REAL SOCIEDADE

CONCEITO DE SOCIEDADE, SOCIEDADES CULTURAIS E SUAS INFLUÊNCIAS NA CIÊNCIA MODERNA NOS SÉCULOS XVII E XVIII, REAL SOCIEDADE
Edson de Souza Couto[1]
RESUMO
           A análise das Sociedades Culturais dos séculos XVII e XVIII, principalmente na Inglaterra, desde suas formações, objetiva estabelecer as relações intrínsecas entre as diversas correntes de pensamento da época e fixar quais os elementos que aglutinaram divergências políticas e religiosas em torno de único propósito: “ Ciência Moderna”. A Real Sociedade será o resultado deste equilíbrio intelectual, onde opiniões e posturas pessoais dão lugar ao interesse coletivo e às mais nobres intenções.
Palavras-chave: Sociedades Culturais, Ciência Moderna, Real Sociedade, História Cultural.
Introdução
      Conhecer o pensamento humano talvez seja o maior desafio da ciência. O homem enquanto individualidade é um complexo quebra-cabeça formado de sentimentos, ideais, éticas,moralidades, culturas e verdades. Contudo existe uma dificuldade ainda maior, compreender este homem no seu meio, em sociedade, diante do amálgama de necessidades e de sonhos, de ambições e realidades.
      Todavia, foi no crepúsculo da Era da Razão e no alvorecer da Era da Luzes que se nos apresenta uma das mais surpreendentes sociedades civis, a Real Sociedade, engendrada e constituída pelos mais notáveis homens de sua época, mas que no entanto tinham motivos de sobra para serem inimigos.
       Em assim sendo propõe-se desvendar este mistério trazendo à luz, conceitos primordiais à compreensão dos agrupamentos sociais, suas inter-relações, suas nuances, sem contudo parecer um Tratado Sociológico à moda Durkheim, nem tão pouco enveredar-se pela Psicologia Social de Piaget, embora necessário beber destas fontes, irrefutavelmente.
1.    Sociedades e Sua Formação
      O homem é um ser social[2]. Desde a mais remota antiguidade até os dias de hoje necessita do outro para viver e compartilhar a vida. No princípio por questões de pura sobrevivência, como combater o frio pelo calor dos corpos, a caça em comum e a auto-proteção contra as ameaças externas. As relações de consangüinidade, de prole, de preservação da espécie, de afinidades formam a primeira unidade social, a família. A família é uma sociedade complexa e, portanto, nos exige conceituá-la. No entanto surge um paradoxo neste contexto, o homem é uma personagem única, individual, sem igual na natureza; poderá haver milhares de seres humanos e, no entanto, todos guardarão diferenças inquestionáveis. Estas diferenças vão se manifestar em todos os campos da identidade humana seja, psicologicamente, intelectualmente, fisicamente, etc. Nem citaremos a questão do gênero, assunto para outro momento.  Então porque se associar? Que elementos fazem ou exigem do homem a necessidade de se unir a outros homens, tão diferentes entre si? O que é uma sociedade? Qual sua finalidade? No que se assenta sua natureza? Quais suas influências na vida e na cultura do homem? O que ciência moderna obteve de benefício com as sociedades?
2.    Sociedade, Contrato Social, Estado, Nação
         O homem é um ser pensante que por ser frágil não sabe viver isolado, precisa da interação com seus semelhantes a fim de buscar o seu autoconhecimento, capta e retêm informações e portanto atinge níveis de consciência melhorando assim o convívio social.
        Socializa-se não apenas porque depende de outros para viver, mas porque os outros influenciam na maneira de conviver entre si mesmos e com aquilo que deseja e fazem (Eugênio Mussak)[3].
        Todavia houve um tempo em que estas associações tornaram-se tão importantes para vida humana que passaram a relacionar-se entre si, formando a idéia de Estado, ou seja, as sociedades juridicamente organizadas.
         Por outro lado se analisarmos a citação do epílogo esta sugere que nós somos, pela nossa diferente natureza, rebanho de animais dirigidos por uma irreconhecível e persvasiva predisposição biológica de associar-se a outros membros de nossa espécie. Esta colocação filosófica é também um axioma. No entanto, o problema está no processo cognitivo que faz com que as pessoas se auxiliem, reciprocamente ou não, ou até sintam-se renitentes ao ato de auxiliar. O homem como ser social está envolvido de alguma forma evidente de relacionamento com outros: dando suporte, demandando, ditatorial, justa, explorativa ou altruísta. Tais características poderiam aumentar ou diminuir o bem-estar social subjetivo das pessoas. A participação em grupos já tem sido objeto de pesquisa de muitos estudos.
           Um senso comum sobre “viver em grupos” tem sido estabelecido desde o início do século 20. Freud (1922), nos seus escritos sobre psicologia de grupos e na análise do ego, considerou que sendo membro de um grupo satisfaz necessidades e desejos psicológicos básicos. William McDougall[4], citado por Forsyth (1996), em um trabalho intitulado “Uma Introdução à Psicologia Social”, 1908, argumenta que um “instinto de rebanho” nos dirige para nos reunirmos em grupos. Segundo o autor, acredita-se que a dureza da vida no campo faz as pessoas emigrarem para as cidades. Porém, outros argumentos talvez invertam esta verdade. Talvez, a alta densidade populacional nas cidades, o vasto rebanho humano é que exerce atração naqueles que vivem fora dele.
             Outros autores entendem que o homem vive em sociedade como forma de suprir suas necessidades funcionais e de provisão social. Esta característica funcional evidencia que a vida em grupo seja preferida do que a solidão; grupos suprem-nos com recursos que nós necessitamos para uma existência social. Este conceito não se limita a uma necessidade física de estar com os outros. Shaver (1973) conclama que “provisão social” deve ser entendida entre intimidade psicológica, integração e envolvimento. Nesse sentido, Bale (1980) analisou dominância / submissão e seus aspectos negativos em grupos, e Weiss (1986) também solicita que haja distinção entre solidão social e emocional.
             Alguns autores têm sugerido modelos para analisar as funções da vida social e a necessidade humana para unir-se em grupos. Forsyth (1996) [5] apresenta um modelo teórico chamado de “as cinco grandes tradições nos grupos”:
• Pertencimento – Supre a oportunidade para contato e relacionamento com outros indivíduos em uma organizada rede social, promove comunicação geral e interação social entre as pessoas;
• Intimidade – proporciona oportunidade para um caloroso, suportável, amigável e solidário relacionamento com outros. Além de propiciar coesivo trabalho de grupo;
• Produtividade – Oferece oportunidade para a produção, aquisição, sucesso, controle de recursos e execução de tarefas orientadas;
• Estabilidade – Fornece aos indivíduos sentido de aumento de estabilidade ou decréscimo de ansiedade, diminuindo dúvidas pessoais, tensão, vulnerabilidade, insegurança e autopiedade; enquanto aumenta a auto-estima, relaxamento quanto à dureza da vida, satisfação pessoal e identidade (suporte social);
• Adaptabilidade – Oferece oportunidade para criatividade, refinamento de idéias, melhoria pessoal, aumento da capacidade de entender a si mesmo e os outros, melhoria das relações interpessoais (aprendendo habilidades sociais e sociabilizando-se como membro).
           De outra forma a Ciência Social, a Sociologia, nasce para tentar entender e explicar cientificamente esta nova realidade afirmando que o homem enquanto ser social partilha uma herança genética que o define como ser humano. A nossa estrutura cerebral permite-nos desenvolver a linguagem e interpretar os estímulos provenientes do meio.
          É na capacidade de o ser humano se adaptar ao meio e de transmitir ás gerações seguintes as suas conquistas, é na sua capacidade de aprender que reside a linha que distingue o ser humano do animal. O homem só se realiza como pessoa na relação com os outros, relação essa que tem vários níveis e assume múltiplas formas:     Universalidade; Sociabilidade e Intimidade.  
         Ao nível da intimidade a pessoa encara-se como um ser dotado de uma consciência de si, baseada na racionalidade e nas emoções que, embora seja individual e interior, só se constrói com base em relações significativas com outros seres humanos...
          Ao nível da sociabilidade a pessoa encontra-se como membro de uma sociedade organizada, necessitando de passar por um longo processo de socialização até que  possa assumir-se como um membro ativo da sociedade a que pertence. Não se pode dizer que a sociedade é uma mera soma de indivíduos, uma vez que cada indivíduo é, em si mesmo, um produto da cultura da sociedade a que pertence...

"Dentro de ti estão todos os que te viram como gente ou não, cada palavra que te dirigiram é uma luz ou uma ferida, às vezes, um clarão que cega  ou mostra que sim, outras vezes um muro de sombra e um rio que secou sem razão porque a palavra não pode semear-se no campo largo do contentamento fazendo crescer uma floresta morta de desencanta no que podia ser um jardim ou um campo verde sem principio nem fim"



"Não podemos viver isolados porque as nossas vidas estão ligadas por mil laços invisíveis"  Herman Melville





 
           A filosofia, a arte,a religião, a literatura, a ciência...são vias para alcançar a Universalidade, uma integração do individuo no COSMOS, no TODO, realizando-se como Pessoa, no encontro do que o transcende e pode dar um sentido à sua existência.



           Pensadores Modernos, a fim de justificar as causas das associações humanas apresentam duas Teorias. Do ponto de vista sociológico podemos citar as duas versões clássicas da teoria contratualista que são hoje expostas como simples curiosidade histórica, contudo que muito nos dizem.
           Em sua obra LEVIATHAN, Hobbes[6] afirmava que a princípio, durante a vida primitiva, os homens viviam isolados, em absoluta liberdade, que nessa interdependência, os homens se mostravam desprovidos de moral e extravasavam seu egoísmo violento num mundo prematuramente em guerra. Daí seu refrão: “homo homi ni lupos”. (o homem é o lobo do homem).
Para bloquear a autodestruição, os homens resolveram fazer um pacto – social em que todos abriam mão dos seus direitos, inclusive da sua liberdade, entregando–os à autoridade de um príncipe, - o LEVIATHAN. Assim, criava-se artificialmente, a sociedade civil, dirigida a ferro e fogo, pelo autoritarismo arbitrário, - por onde Hobbes esperava agradar a monarquia absolutista inglesa.
          Rousseau[7] descrevia um quadro oposto ao de Hobbes, para chegar à teoria de “contrato social”, - precisamente o nome de sua obra. Afirmava que o homem, originalmente, vivia livre e feliz, em contato direto com a natureza. Em certo momento, o homem reconheceu que a vida associativa lhe daria certas vantagens, embora prejudicasse sua liberdade e, conseqüentemente, sacrificasse sua felicidade. Para lograr aqueles benefícios, o homem teria feito àquele “contrato social”; mas, sua tendência é retornar ao estado primitivo e natural.
          Para Hobbes, o homem nascia mau: a sociedade é que o punha nos eixos, assim mesmo sob a autoridade de Leviathan.
Para Rousseau, o homem nascia bom e feliz: a sociedade é que o pervertia, tornando-o mau e infeliz - razão pela qual recomendava o governo liberal, em que as obrigações civis ferissem menos a liberdade de cada um.
Rousseau fez uma reflexão interessante (conquanto igualmente errada), a respeito da vivência de um casal. Assim, quando se diz que ele era anti-social, poder-se-ia indagar se recusaria a viver com uma mulher... Certamente não, - diria ele. Só que aí no seu entendimento, não há um fato social. Este se caracteriza pela existência de um bem-comum. Importante verificar que a formação das sociedades modernas levou em conta inúmeros fatores, desde o caráter natural, bem como psicológico, econômico, cultural, religioso, estratégico, etc.
           Os séculos XVI, XVII e XVIII sob forte influência dos resquícios da Renascença e efervescência do Iluminismo, principalmente na Inglaterra e na França, desempenharam papel importante no surgimento do pensamento científico e, no implemento daquilo que chamaríamos, mais tarde, de Ciência Moderna.          Nomes como Hipócrates[8], Galeno[9], Copérnico[10], Galileu[11], Grosseteste[12], Bacon[13], Occam[14], constituirão a base e os alicerces da das teorias científicas modernas. Tudo culminando com as descobertas de Isaac Newton[15], que foi um dos Presidentes da Real Sociedade, uma das mais prestigiadas academias de ciências da Inglaterra.
          Uma vez estreitada à relação existente entre a natureza humana e suas necessidades para bem viver, fica fácil compreender que o surgimento das diversas sociedades visava atender os desafios da vida entre os seres humanos. A formação da família como elemento central, unidade celular da sociedade, formadora, inclusive, da religião antiga[16], estrutura da base civilizadora, vai oferecer os elementos da constituição das pequenas comunidades, que em se organizando, através de um pacto social gerarão as vilas, os condados, as cidades e o Estado, propriamente dito, como sociedade politicamente organizada.
          O Estado Moderno emergirá das profundezas dos feudos pela formação da sociedade agrícola (camponeses), da sociedade religiosa (Igreja), da sociedade econômica (mercantilismo), da sociedade burguesa, da sociedade secreta (heresia), da sociedade militar (exército), da sociedade cultural (universidades), da sociedade real (nobreza), todas sob braço “protetor” e judicante, centralizador do Monarca, absoluto, senhor da vida e da morte, dono de tudo e de todos, o “Deus-Sol Encarnado”, o representante da vontade divina.
          A diversidade de interesses individuais, as posturas políticas, as necessidades sociais variam de Estado para Estado, de País para País, de Sociedade para Sociedade. Como explicar a formação de uma Sociedade Científica, num país cujos conflitos políticos entre monarca e parlamento, entre religiões católicas, protestantes e anglicanas que dividem as opiniões da Elite Cultural, da própria Nobreza, mas ao mesmo tempo une todas as mentes conflitantes em um objetivo específico : A Real Sociedade. Que estranho elemento de ligação interage neste amalgama intelectual? Por que as divergências políticas, religiosas são sublimadas para formação desta Sociedade na Inglaterra?
3.    Sociedades do século XVII e XVIII, Inglaterra            
           O objetivo geral deste projeto é investigar os elementos externos às relações político-religiosas conflitantes na Inglaterra dos séculos XVII e XVIII, que possibilitaram a formação da maior e mais prestigiada Sociedade Científica da Europa, a Real Sociedade, e se possível determinar as causas que uniram pessoas tão diferentes, que em situação normal, nunca se associariam.
            Lembre-se que diferentemente das outras Nações Européias, a Inglaterra adotou um sistema peculiar na formação do Estado Nacional. Enquanto na França, Espanha, Portugal, etc., imperavam um Monarca Absoluto, com poderes inquestionáveis e irrestritos, os ingleses pretendiam condicionar  o Rei ao Parlamento, instituto criado desde o século XII.
            O Parlamento Inglês com sua Câmara dos Lordes e Câmara dos Comuns, vai ser responsável pelas profundas mudanças no pensar político-econômico da Inglaterra, que desde Henrique VIII vinha enfrentando problemas com a Igreja Católica, graças aos devaneios amorosos do Rei. Via-se na antiga terra dos bretões grupos que defendiam uma Igreja Inglesa (Anglicana) e outros que defendiam a Igreja Romana. No entanto entre eles havia ainda os Puritanos (Calvinistas, protestantes radicais) que se opunham aos dois grupos anteriores, os Jacobitas (católicos e anti-protestantes) que apoiavam o retorno da Casa dos Stuarts.
            O panorama desenhado pela história inglesa tinha características próprias, quando governada por um rei católico, os protestantes, anglicanos, judeus e outros eram hostilizados e as relações com países também católicos eram estreitadas mesmo quando se tratava de antigos inimigos políticos como Espanha e França. Contudo quando alcançava o poder um Rei Protestante, invertiam-se as situações a perseguição recaia sobre os católicos e seus aliados.
             Porém outro fator que interferia diretamente nas relações de poder na Inglaterra, impulsionados pela idéias iluministas, muitos ingleses acreditavam que o regime monárquico absoluto deveria dar lugar ao regime Parlamentarista, mais democrático e justo. As sociedades culturais, as elites, a nobreza, a burguesia, os ruralistas dividiam e divergiam de opiniões. Note-se que estas questões não surgem nos séculos XVII e XVIII, são anteriores a tudo isto e fruto de reformas sociais que vem ocorrendo desde disputas dos Yorks, Lancasters, Plantagenetas, Tudors, Stuarts[17].
            Neste palco se desenrola o teatro da vida, e de ato em ato, e de cena em cena, vão se delineando as matizes da nova peça, do novo quadro, da nova sociedade.  
            Os Stuarts foram os primeiros reis do Reino Unido, Rei James I, de Inglaterra que começou o período quando também já reinava na Escócia como James VI, e juntou pela primeira vez os dois tronos em uma só monarquia.
            A Dinastia dos Stuart reinou na Inglaterra e Escócia por 111 anos, cobrindo praticamente o século XVII, um período extremamente agitado politicamente, de muita instabilidade civil interna, de pestilências e guerras.
           Apesar de certa evolução cultural, foi uma idade de intenso debate religioso e políticas radicais que mergulhou a nação em uma sangrenta guerra civil (1642-1649) que interrompeu este período monástico por mais de uma década (1649-1660), entre a Coroa e o Parlamento, os Cavaleiros e os Roundheads[18], resultando na vitória dos parlamentares de Oliver Cromwell (1599-1658) e a execução dramática do Rei Carlos I (1649) e a instalação de um pioneiro regime republicano, a Commonwealth[19], e o herdeiro do trono Carlos II exilado.
          Com a derrota dos realistas escoceses (1651), a guerra civil terminou, o Parlamento foi dissolvido (1653) e assumiu o governo como Lord Protetor da Inglaterra, da Irlanda e da Escócia, partilhando o poder com um conselho tutelar (1653-1658). Seus sucessores, especialmente seu filho Richard (1626-1712), não tiveram competência suficiente para evitar confrontos entre o parlamento e as forças militares e a monarquia foi restaurada com a volta de Carlos II do exílio e sua coroação como soberano do Reino Unido, dois anos depois. Outra guerra civil estourou por ocasião da sucessão de Jaime II, a Revolução Gloriosa, quando William e Maria de Orange  ascenderam o trono como os monarcas em comum e defensores de Protestantismo, seguidos pela Rainha Ana, o segundo das filhas de James II. Com a oficialização do Ato de Determinação (1701), segundo o qual, só protestantes pudessem assumir o trono, decretou-se por antecipação o fim dos Stuarts na coroa.
          Justamente, neste período, onde e quando as circunstâncias parecem menos favoráveis ao surgimento de boas obras, é que um fato inusitado passa a operar, sob a influência de Sir Robert Moray[20], homem forte nas relações políticas entre Escócia, Inglaterra e França, começam ser escolhidas e convidadas pessoas de renome acadêmico, como cientistas, alquimistas, astrólogos, engenheiros, físicos, matemáticos, religiosos, para fazerem parte de uma sociedade em formação que tinha apoio do próprio Rei Carlos I[21].
          O fato que mais causa estranheza neste evento, certamente, não é as diferenças de pensamento e linhas científicas, por mais ecléticos que possam parecer às pessoas envolvidas, mas sim a evidência de que muitas delas eram inimigas mortais politicamente. Dentre os nomes oferecidos estavam apoiadores do regime monárquico de Carlos I e seus arqui-rivais, protegidos de Oliver Cromwell.
           Revendo alguns nomes desta lista: Reverendo John Wilkins (inventor-parlamentarista), Visconde William Brouncker (matemático-monarquista), Robert Boyle (físico-monarquista), Conde de Kincardine Alexander Bruce (trabalhava com minas de carvão e sal,monarquista), Sir Robert Moray (negociador político-monarquista), Sir Paul Neile (ótico-monarquista), Dr. Jonathan Goddard (médico-parlamentarista), Dr. William Petty (estatístico-médico e químico, parlamentarista), Sr. William Ball (Cientista amador, monarquista), Sr. Lawrence Rooke (geômetra-monarquista), Sir Christopher Wren (cientista-arquiteto, monarquista), Sr. Abraham Hill (comerciante rico, monarquista), Elias Aschmole (alquimista, astrólogo,monarquista). Não é preciso ser “expert” para perceber os antagonismos políticos culturais destas pessoas e verificar que o convívio e o diálogo seriam dificultosos, salvo se houvesse algum elemento capaz de uni-los passando por estas diferenças.
          Toda preocupação inicial que se teve com a abordagem sobre as sociedades visava preparar terreno para esta constatação referida acima. O paradoxo das diferenças necessita um elo, um “elo perdido”, para que se faça a ligação de mundos diferentes dentro de uma mesma realidade. Este enigma somente pode ser desvendado quando conhecemos a concepção de sociedade e permitimos uma viagem mental por todas as vias de ação do homem. A transparência das idéias possibilita ver o “outro” lado, mas não a si mesma. Somente diante do desafio, das vicissitudes ousamos criar mecanismos capazes de satisfazer nossas carências. “Tudo que existe foi criado pela mente humana, salvo aquilo que sempre existiu”.
            A Real Sociedade, sociedade de cunho científico, nascida em 1660, na Inglaterra e difundida pelo mundo moderno, que abarcou em sua nave as maiores e melhores mentes da época, tinha um segredo. Este segredo era a “chave oculta” que abria a porta de outra sociedade, mais antiga, misteriosa, silenciosa. Uma sociedade que tinha como característica eliminar diferenças, fazer todos iguais.
           Assim como na Real Sociedade, seus membros eram escolhidos, criteriosamente, e submetidos à aprovação dos demais membros. Porém os quesitos a serem preenchidos por esta sociedade discreta, eram insólitos. Opção religiosa, orientação política, situação social eram valores de somenos importância.
          Esta sociedade nascida do sangue de muitos, cuja  origem remonta a Escócia, precisamente em Roslim[22], antes de 1440, só exigia alguns requisitos de seus futuros membros, que fossem “livres, maiores de idade e de bons costumes”.
          Contudo tinha uma regra básica e inquestionável para permanência de seus membros dentro do quadro social, restava proibida qualquer discussão de natureza religiosa ou política. E foi evidentemente esta norma que permitiu que pessoas tão diferentes no pensar pudessem fundar uma organização com fins científicos sem desviar sua atenção para dogmas religiosos ou para cores partidárias. Os membros da Real Sociedade, antes de tudo e acima de tudo eram francos-maçons[23].
         O que mais  agrada pensar é que o homem se une a outros homens com o propósito de constituir “uma força”, chamada sociedade, para atingir os objetivos comuns, e quando esta se apresenta ineficaz ou insuficiente, ela  busca dentro de outras sociedades os elementos necessários a se auto-complementar. As sociedades culturais dos séculos XVI, XVII e XVIII alimentaram-se de fontes mais antigas para suprir e romper os grilhões da intolerância política e dos ranços religiosos, imbuídas de um propósito maior. Se nos dias de hoje gozamos de conforto e felicidade e conhecemos as possibilidades de uma vida melhor devemos a um desconhecido chamado “Sir Robert Moray”, que como maçom, investido de valores morais, e revestido uma vontade ferrenha, vislumbrou o futuro como uma realidade exeqüível, sonhou e fez o sonho acontecer. Ele não era cientista, nem um gênio, nem era um visionário ou profeta, era simplesmente um franco-maçom.           

4.    Referências
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ADONIAS FILHO, Ricardo Coração de Leão / 1983 Tecnoprint
BRESCIANI, Maria Stella Martins. Londres e Paris no século XIX / o espetáculo da pobreza / 1982 Brasiliense 
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Ed. Martin Claret, São Paulo, 2007
DEFOE, Daniel, Um diário do ano da peste / 2002 Artes e Ofícios
FRASER, Antonia, As seis mulheres de Henrique VIII / 1996 Record 
GERBER, Lambert, Historia da Inglaterra / 1941 Editorial Labor
HARTLEY, Harold. The Royal Society, Its Origins and Founders, Ed. Sir Harold Hartley
HILL, Christopher, O eleito de Deus / Oliver Cromwell e a Revolução Inglesa / 2001 Companhia das Letras
KEIGHTLEY, Thomas. Sociedades Secretas da Idade Média. Ed. Madras, São Paulo, 2006
LOMAS, Robert. A Maçonaria e o Nascimento da Ciência Moderna, O Colégio Invisível, Ed. Madras, São Paulo, 2007
LYON, Henry. The Royal Society, 1660-1940. Inglaterra
MACNULTY, W. Kirk. Maçonaria, Uma Jornada por Meio do Ritual e do Simbolismo. Ed. Madras. 2008. São Paulo.
MANTOUX, Paul, A revolução industrial no século XVIII / estudo sobre os primórdios da grande industria moderna na Inglaterra / 1988 Ed. UNESP / Hucitec
PLAIDY, Jean, Assassinato real / a vida e a morte de Ana Bolena na corte de Henrique VIII / 2000 Record 
PURVER, Margery. The Royal Society, Concept and Creation, Inglaterra.
RESTON, James, Guerreiros de Deus / Ricardo Coração de Leão e Saladino na Terceira Cruzada / 2002 Imago
ROBINSON, John J., Nascidos do Sangue, Os Segredos Perdidos da Maçonaria. Ed. Madras. 2005. São Paulo
STEVENSON, David. As Origens da Franco-Maçonaria. Ed. Madras, São Paulo, 2006.
THOMPSON, E. P. Os românticos / a Inglaterra na era revolucionária / 2002 Civilização Brasileira
ZIERER, Otto, Inglaterra / 1986 Circulo do Livro








1Acadêmico do Curso de Licenciatura em História, pela Ulbra/Torres, formação em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-RS, graduação em Tecnologia de Informação, com especialização em Redes Sequenciais, CCNA1, pela Unisul/Araranguá e Cisco Networking Academy Program. Pesquisador em Ciências Antigas, História das Religiões, Mitologia, Hermetismo. Terapeuta Holístico.
[2] Aristóteles, filósofo grego, século V a.C.
[3] Eugênio Mussak, Educador e Consultor de Empresas, notabilizou-se por discorrer sobre temas como Cultura e Sociedade/Saúde e Qualidade de Vida.
[4] William McDougall (1871-1938) foi um psicólogo experimental e teórico de largo espectro de interesses.
[5] Forsyth, J. P., & Eifert, G. H. (1996a). Systematic alarms in fear conditioning I: A reappraisal of what is being conditioned. Behavior Therapy, 27, 441-462.
[6] Thomas Hobbes, Leviatã, obra publicada em 1651 que trata da Teoria do Contrato Social.
[7] Jean Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo, escritor e compositor francês, com sua filosofia política influenciou  a Revolução Francesa, bem a Revolução Americana. Pensador político, sociológico e educacional moderno.
[8] Hipócrates de Cós (460-370 a.C.) considerado o Pai da Medicina, famoso por seu juramento usado até hoje pelos formandos de Medicina.
[9] Galeno (129-200 a.C.) médico romano dos gladiadores, desenvolveu estudos da fisiologia dos animais, influenciou consideravelmente a medicina árabe.
[10] Nicolau Copérnico, 1543, publicou  a “De revolutionibus orbium coelestium” onde contestava a Teoria Geocêntrica de Aristóteles.
[11] Galileu Galilei,  polímata (físico, matemático, filósofo, astrônomo) italiano, aperfeiçou o telescópio e desenvolveu a Teoria Heliocêntrica, confirmando as bases teóricas de Copérnico. Em 1633 enfrentou a Santa Inquisição por suas idéias (heréticas) tendo que abjurá-las para não ir à fogueira.
[12] Robert Grosseteste (1175-1253) religioso e matemático: “o mundo só podia se compreendido pela matemática”.
[13] Roger Bacon (1214-1294) também religioso católico, estudou em Oxford, desenvolveu estudos em ótica, matemática e alquimia. Ficou notável pelo seu método empirista de observação cuidadosa.
[14] Gulherme de Occam (1288-1347) defendeu a idéia da simplicidade das hipóteses, conhecida como “Navalha de Occam”.
[15] Isaac Newton,(1643-1727) filosófo, matemático, físico, alquimista, teólogo, formulou a Teoria da Gravitação.
[16] COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga,Ed. Martin Claret, São Paulo, 2007.
[17] Stuarts, Dinastia Inglesa de Reis Católicos que sobrevieram aos Tudors cuja última representante foi Elizabeth que não deixou herdeiros, vindo a herdar o trono da Inglaterra os descendentes de Maria Stuart, Jaime VI da Escócia ( Jacob )
[18] Roundheads foi o apelido dado aos apoiadores do Parlamento durante a Guerra Civil Inglesa. Também conhecidos como parlamentaristas, eles lutaram contra o Rei Carlos I e sua Cavaliers (monarquistas) que reivindicou o poder absoluto e o direito divino do rei.
[19]Commonwealth é um termo inglês tradicional para uma comunidade política fundada para o bem comum. Historicamente, tem sido por vezes sinônimo de "república".
[20] Sir Robert Moray, escocês, 1º maçom iniciado na Inglaterra, serviu na Guarda Escocesa de Luis XIII, prestava serviços ao Cardeal Richelieu, ajudou o Rei Carlos I, da Inglaterra em várias ocasiões. Nitidamente monarquista.
[21] Lomas, Robert. A Maçonaria e o Nascimento da Ciência Moderna, pg. 42-44.
[22] A Maçonaria e o Nascimento da Ciência Moderna, Robert Lomas, pg. 99.
[23] Francos-maçons: Expressão que denomina os membros de uma sociedade secreta,chamada “Franco-Maçonaria”, também  chamados de “Pedreiros Livres”

sábado, 13 de março de 2010

A Evolução da Bíblia:


A Evolução da Bíblia:

Por séculos, a Bíblia tem sido, no ocidente, a autoridade máxima sobre diversos assuntos. A Palavra Divina capturada em papel, a vontade de Deus nua e crua. Argumente com algum religioso abrahâmico[1] que a Bíblia pode ter sido um bom livro, mas que mexeram tanto nela que do original só resta o nome e você consegue presenciar uma experiência em miniatura da formação de tornados.

De fato, argumentar qualquer coisa sobre o que foi feito ou não com a Bíblia acaba se tornando um exercício de especulação ou simplesmente do bom e velho cinismo. De um lado uns a defendem com unhas e dentes, de outro atiram paus e pedras sem mirar nem ver onde acertam. Para ambos os lados a conversa se torna um simples ato de gritar e se fazer ouvir e ambos saem tão convencidos de suas certezas quanto quando começaram.

Então ao invés de assumir qualquer um dos lados - "sim, é possível uma entidade supra humana inspirar outros de forma que registrem suas impressões em papel" ou "grande parte do que existe na Bíblia não passava de folclore, poesia e leis de uma época, que foram divinizadas como forma de se controlar um povo" - vamos simplesmente fazer uma listagem de fatos sobre ela para nos entreter e nos ajudar a tirar nossas conclusões.

1- O que é a Bíblia


Bíblia (do grego βίβλια, plural de βίβλιον, transl. bíblion, "rolo" ou "livro") é o texto religioso central do judaísmo e do cristianismo.

2- A Bíblia sempre foi a Bíblia?


Na verdade não. No início era conhecida como Tanakh ou Tanach (em hebraico תנ״ך), pelos Judeus. O seu conteúdo é equivalente ao do Antigo Testamento, mas seus textos estão organizados de forma diferente e são apresentados em outra ordem.

O nome Tanakh é formado pelas sílabas iniciais dos três livros que a formam:

- A Torá (תורה), também chamado חומש (Chumash, isto é "Os cinco") refere-se aos cinco livros conhecidos como Pentateuco), o mais importante dos livros do judaísmo.

- Neviim (נביאים) "Profetas"

- Kethuvim (כתובים) "os Escritos"

O Tanach é às vezes chamado de Mikrá (מקרא)
3- A Tanakh sempre foi a Tanakh?

A divisão refletida pelo acrônimo Tanakh está registrada em documentos do período do Segundo Templo (515 a.C. e 70 d.C.) e na literatura rabínica (A Mishná e a Tosefta - compiladas a partir de materiais anteriores ao ano 200 d.C. - são as primeiras obras existentes da literatura rabínica). Durante aquele período, entretando, o acrônimo Tanakh não era usado, sendo que o termo apropriado era Mikra ("Leitura"). Este termo continua sendo usado em nossos dias, junto com Tanakh, em referência as escrituras hebraicas.


No hebraico moderno, o uso do termo Mikra dá um tom mais formal do que o termo Tanakh.

De acordo com a tradição judaica, o Tanakh consiste de vinte e quatro livros. A Torah possui cinco livros, o Nevi'im oito livros e o Ketuvim onze.

4 - Mas espere ai. A Bíblia não vem desde a antiguidade? Ela não tem milhares e milhares de anos de idade?

Então, ai as coisas começam a ficam interessantes. A cultura oral judaica é muito antiga, mas no que diz respeito a material sólido existente, letras registradas no papel (ou pergaminho ou papiro ou metal) o que temos é um pouco mais recente.

Para entender isso vamos consultar alguns exemplos da tradição judaica.


O primeiro registro bíblico da passagem de uma tradição oral para uma escrita surge no livro do Êxodo quando Deus diz para Moisés que se prepare para receber "as tábuas de pedra, a lei e os mandamentos que escrevi para os ensinar" (Ex 24:12). E mesmo assim na Torá fica claro que não estão presentes todos os comandos e leis de Deus, um exemplo claro é o Shabat. Apesar de estar presente nos Dez Mandamento - tradição escrita - não existem detalhes de como fazer isso. Deus fala a Moisés que guarde o Shabat: "Santificai o dia de sábado, como ordenei a vossos pais” (Jeremias 17:22), mas não existe um relato dessas ordenanças. Outro exemplo está em Deuteronômio quando Deus diz para Moisés que "poderás degolar do teu gado e do teu rebanho ... como te ordenei" (Deuteronomio 12:21) mas não existe um registro escrito na própria Bíblia de que maneira isso deveria ser feito.

Isto nos mostra que mesmo que tenha surgido um registro escrito das leis muita coisa ficou de fora dele ainda, era uma tradição oral que foi mantida até muito depois.

Como já afirmou o Rabino Aryeh Kaplan "Visto que a Torá Escrita mostra-se primariamente incompleta a menos que complementada pela tradição oral...".

Assim vemos que mesmo com a escrita a tradição oral sempre foi muito forte, e permanece assim até hoje.

Mas o ponto é: o quanto essa mudança pode afetar nos registros da Bíblia?

Antes de mais nada vamos imaginar que os escritores originais acreditavam em Deus, e acreditavam que estavam registrando a Sua Vontade. Imaginem o zelo de uma pessoa que deseja registrar um texto que está chegando a ela diretamente do criador. E mais, ela ainda tem o peso de ter que passar isso de forma que não existam erros ou dúvidas, voltando para a Torá esse zelo aparece na passagem em que antes de morrer Moisés revisa a tradição passada por Deus que não havia sido registrada para esclarecer qualquer ponto que pudesse dar margens à dúvida ou interpretação: "Além do Jordão, na terra de Moab, começou Moisés a explicar esta Lei” (Deuteronômio 1:5). Mas veja que não existem registros ainda destas explicações, a preocupação não era registrar, mas passar adiante.

Ainda existe outro ponto interessante que é a resistência do próprio Deus de se registrar tudo o que se passasse. Sem querer ser leviano era algo como: Passei os registros que impostavam ser registrados, agora obedeçam, não percam tempo escrevendo qualquer coisa que Eu diga! Em Eclesiastes 12:12 lemos: "Escuta ainda, filho meu: escrever livros é tarefa sem fim, e muito estudo esgota a carne”. Ou em Oséias 8:12: "Se tivesse escrito a maioria de minha Torá, [Israel] seria contado igual a estranhos", onde vemos a tradição como algo que deveria permanecer dentre o povo e não ser passada para estranhos.

Assim temos mesmo uma relutância entre começar um registro da Vontade Divina, gravando-a para o futuro. Mas isso aconteceu, ao menos em parte. E agora vamos fazer um novo exercício. Imagine que Deus passou uma importante lei para o seu bisavô, ele passou para seu pai, seu pai para você e você decide registrá-la para que não se perca. Você tem como saber que está registrando exatamente o que foi passado para seu antepassado não tão distante?

Claro que podemos afirmar que se algo é repetido diariamente ele permanece íntegro. Mas temos casos quotidianos que mostram que não é bem assim que a coisa funciona. Uma expressão muito conhecida hoje é "cor de burro quando foge", mas ela acaba sendo aplicada em inúmeras situações que implicariam significados diversos. Estudando a origem da frase vemos que ela não se referia a uma mudança na coloração do asinino quando ele bate em retirada, e sim a um ditado que originalmente era: "corro de burro quando foge". Um burro é um animal dócil, quando ele se irrita e sai correndo se torna um animal perigoso, a expressão significaria algo como: "quando a situação fica preta eu não fico pensando, dou no pé!".

Vemos ai um caso de tradição oral que perde o sentido com o tempo e o uso. Um exemplo de outra tradição oral que não perde o sentido mas muda de sentido quando registrada é a famosa: "Quem tem boca, vai a Roma". Se consultarmos o Dicionário de Máximas, Adágios e Provérbios, de Jayme Rebelo Hespanha (1936), a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (1948), o Grande Dicionário da Língua Portuguesa de António de Morais Silva (1949 a 1959), o Livro dos Provérbios Portugueses, da Editorial Presença (1999) e Dicionário de Provérbios, Adágios, Ditados, Máximas, Aforismos e Frases Feitas, da Porto Editora (2000) podemos atestar que este provérbio está registrado há muito tempo já, e ainda existem variantes dele: «Quem tem língua vai a Roma»; «Quem língua tem a Roma vai e de Roma vem»; «Quem tem língua a Roma vai e vem».

Em cima disso existem estudos sobre o significado dele, como por exemplo:

" A frase «Quem tem boca vai a Roma» traduz a notoriedade da Cidade Eterna, mas também a verdade de que quem sabe perguntar consegue chegar seja onde for (literal e figuradamente), consegue obter os conhecimentos de que precisa para se orientar. As palavras-chave aqui são três: boca, vai e Roma. A boca significa a capacidade de falar, de perguntar, de comunicar; o verbo ir tem que ver com o percurso, a caminhada, significando passar de um lugar a outro, deslocar-se, mas também evoluir, progredir; Roma fora, aquando do Império Romano, a capital, a cidade mais importante do mundo conhecido dos europeus, mas uma cidade que ficava longe, sob o ponto de vista dos mais remotos territórios que constituíam o vasto império, e, por outro lado, esta é a cidade cabeça da Igreja Católica, traduz a própria Igreja, o seu governo, o papado, significando para os católicos o que de melhor existe e que se procura alcançar. Chegar a Roma poderá ser difícil, mas quem tem a capacidade de falar ultrapassará os obstáculos e alcançará o que pretende: conseguirá chegar longe, até conseguirá chegar a Roma.

Roma entrou no adagiário por causa da sua importância, do seu valor, do seu mérito, e não por aspectos negativos: «Roma locuta est» (= «Roma falou»: se Roma falou, o que ela disse deve ser seguido pelos católicos); «Roma locuta, causa finita» (= «Roma falou, a causa acabou»); «Roma e Pavia não se fizeram num dia»; «Em Roma, sê romano»; «Todos os caminhos vão dar a Roma», «O que vai aqui não vai em Roma»."

Agora se passarmos algum tempo lendo livros protestantes encontramos uma versão diferente deste adágio dizendo: Quem tem boca vaia (do verbo vaiar) Roma. Vamos nos lembrar agora que os protestantes se tornaram protestantes por protestar contra a Santa Sé Católica, personificada por Roma, como vimos no estudo acima. A origem do adágio não tinha como objetivo mostrar que com vontade chegamos ou conseguimos o que quisermos mas como crítica contra a corrupção do Clero.

Existe algum debate sobre qual o adágio original, mas isso serve apenas para mostrar como a tradição oral pode sofrer mutações nos significados de seus ensinamentos e como depois de registrados eles se tornam uma base que pode ser falha. Imagine que existisse no Novo Testamento uma passagem dizendo como Jesus, durante a Santa Ceia havia dito aos apóstolos que quem tem boca vai a Roma. E imagine que recentemente se encontrasse um pergaminho datado do século I com a mesma passagem contendo a variante "vaia Roma". Como poderíamos ter certeza do que o Messias disse naquela noite?

Claro que nesses dois casos podemos dizer que são expressões populares que não podem ser comparadas a um ensinamento religioso passado por Deus aos Homens, mas podemos ver um outro caso onde algo semelhante ocorre.

Elvis Aaron Presley foi um homem admirado por muitos, em alguns casos essa admiração beirava a histeria e a mania. Ele nasceu em 1935 e morreu em 1977, mas se tornou febre só após os anos 1950 quando começa a sua carreira profissional.


O interessante de pensarmos em Elvis, é que este período em que virou uma febra cheio de fãs é bem recente, dos anos 1950 para os dias de hoje não transcorreram nem 60 anos. E em parte deste período ele esteve vivo ainda. No auge de sua carreira as pessoas desejavam por cada detalhe sobre sua vida que pudessem por as mãos e assim a mídia supria essas pessoas com tudo que pudesse imaginar, relatos de conhecidos e do próprio Elvis, entrevistas registradas, filmes, etc... Uma das manias de Elvis que ficou registrada era seu gosto por um sanduíche que ficou conhecido como Sanduíche de Elvis. É raro encontrar um fã que não tenha ouvido falar dele e muitos já o experimentaram, mas ai existe um problema interessante: não existe uma receita oficial aceita. As maiores biografias do Rei registram essa iguaria, dando também a receita, mas as receitas são diferentes.

O sanduíche era simples, Elvis morreu há pouco mais de 30 anos, três décadas, haviam cozinheiros, amigos, familiares, mas parece que cada um se lembra do sanduíche de maneira diferente. Alguns diziam que consistia de pão de forma, bananas fritas, manteiga de amendoim e bacon. Outros que não havia bacon, existem aqueles que dizem que havia sorvete, outros geléia.

Isto pode parecer uma comparação boba, mas não é. Se em três décadas uma simples receita de sanduíche se perde, por ficar apenas no boca a boca, imagine textos passados por Deus que ficaram no boca a boca por séculos antes de serem registrados?

Um último exemplo é talvez mais simples. Para agora para cantar o hino nacional do Brasil. Então escreva numa folha de papel. Depois pare 5 pessoas na rua, de forma aleatória e peça para elas cantarem, anote a letra ou grave, e depois compare com a sua, veja se o hino que é cantado em escolas, jogos de futebol, pronunciamentos da república é passado oralmente da mesma forma por todas as pessoas.

Então embora a tradição oral seja tão antiga quanto um povo, essa tradição pode muitas vezes mudar desde quando foi formulada e repassada a primeira vez até chegar nos registros.

5 - Mas não foi Moisés que escreveu a Torá? Essa parte não é tão antiga quanto ele? Qual o texto mais antigo da Tanakh?

Embora a tradição reze que o pentateuco, os cinco livros de Moisés (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) sejam os livros mais antigos, como evidência, o pedaço de documento mais antigo encontrado até hoje datam de 100 a.C.

Em 1947 foram encontrados em uma caverna de Q'umran os textos bíblicos mais antigos. O livro bíblico mais antigo que se tem notícias hoje de existir é o Livro de Isaías, um rolo de pergaminho de 7 metros datado do ano 100 a.C.. O Livro de Isaías, com mais de dois mil anos de idade, é uma prova única da autenticidade da tradição da Sagrada Escritura, pois o seu texto concorda com a redação das Bíblias atuais.


Ou trocando a ordem, o Livro de Isaías que temos hoje nas Bíblias é o mesmo que usavam em 100 a.C.


Antes desta descoberta os manuscritos mais antigos existentes datavam principalmente do século III e IV.

Além deste, o documento mais antigo com um trecho apenas da Bíblia é uma passagem de um dos livros de Samuel, escrito em torno de 225 a.C.

6 - Quando os textos que compõe a Tanakh foram escritos originalmente?


Como vimos, a Tanakh é composta por três divisões: Torá, Neviim e Kethuvim.

A tradição judaica mais antiga defende que a Torá existe desde antes da criação do mundo e foi usada como um plano mestre do Criador para construir o mundo a humanidade e principalmente o povo judeu. No entanto, a Torá como conhecemos teria sido entregue por Deus a Moisés (que de acordo com os cálculos de Jerónimo de Stridon teria vivido entre 1592 a.C. e 1472 a.C.), quando o povo de Israel, após sair do cativeiro no Egito, peregrinou em direção à terra de Canaã.

Então aqui culturalmente teríamos uma primeira data. Apesar do mundo - de acordo com a Bíblia - ter sido criado milênios antes do cativeiro, ela teria sida recebida pelos humanos através de Moisés. Então, culturalmente, até o livro do Êxodo a Tanakh não circulava por ai. Portanto a Bíblia mais antiga, ainda culturalmente falando, deveria datar do séc. XVI a.C.

Existem ainda os que defendem que , ainda que a essência da Torá tenha sido trazida por Moisés, a compilação do texto final foi executada por outras pessoas, já que os textos tratam de assuntos que incluem a morte do próprio Moisés, tornando difícil para ele escrever sobre isso.

De acordo com Jan Astruc, pioneiro na sistematização do estudo do desenvolvimento da Torá, afirma que a mesma é constituída por três fontes básicas, denominadas jeovista, eloísta e código sacerdotal, e mais outras fontes além destas três - deve-se enfatizar que, quando se fala destas fontes, não se refere a autores isolados, mas sim a escolas literárias.

Um estudo sobre a história do antigo povo de Israel mostra que, apesar de tudo, não havia uma unidade de doutrina e desconhecia-se uma lei escrita até os dias de Josias (16º rei de Judá, reinou durante o período de 640 a.C. a 609 a.C.). As fontes jeovista e eloísta teriam sua forma plenamente desenvolvida no período dos reinos divididos entre Judá e Israel (onde surgiria também a versão conhecida como Pentateuco Samaritano). O livro de Deuteronômio só viria a surgir no reinado de Josias (621 a.C.). A Torá como conhecemos viria a ser terminada nos tempos de Esdras, onde as diversas versões seriam finalmente fundidas. Vemos então o início de práticas que eram desconhecidas da maioria dos antigos israelitas, e que só seriam aceitas como mandamentos na época do Segundo Templo (515 a.C. e 70 d.C.) como a Brit milá, Pessach e Sucót por exemplo.

Então datar a Tanakh se torna complicado, pois apesar de ter condições de existir desde o século XVI a.C. - a época de Moisés - culturalmente o povo Judeu só teria condições de ter o livro nas mãos depois do século VI a.C.

7 - E quando juntaram todos esses textos em um único volume?


No século VI d.C., aproximadamente, um grupo de escribas judeus recebeu a missão de reunir os textos inspirados por Deus que eram utilizados pela comunidade hebraica em um único escrito. Este grupo foi batizado de Escola de Massorá - o termo "massorá" provém do hebraico "mesorah" (מסורה ou מסורת) e indica "tradição".

Os "massoretas" escreveram a Bíblia de Massorá, examinando e comparando todos os manuscritos bíblicos conhecidos à época. O resultado deste trabalho ficou conhecido posteriormente como o "Texto Massorético".

Então na nossa linha do tempo a versão original do texto da Bíblia, a Tanakh, se conclui finalmente no século VI d.C. 2200 anos depois de Moisés, aproximadamente.

8 - E então a Tanakh virou a Bíblia?


Ainda não. O Texto Massorético foi escrito e compilado apenas no século VI, mas havia já outras versões do Antigo Testamento circulando e muitas pessoas dão a elas mais importância do que a do Texto Massorético.

As outras versões existentes antes eram o Pentateuco Samaritano e a Septuaginta.

9 - Preciso perguntar?


Não, não precisa.

O Pentateuco samaritano ou Torá samaritana é o nome que se dá à Torá usada pelos judeus samaritanos.

Os Samaritanos são um pequeno grupo étnico-religioso aparentado aos judeus que habita nas cidades de Holon e Nablus situadas em Israel e na Cisjordânia respectivamente. Designam-se a si próprios como Shamerim o que significa "os observantes" (da Lei). Os samaritanos recusam o restante dos livros do Tanakh, aceitando apenas sua Torá como livro inspirado.


O Pentateuco samaritano está escrito no alfabeto Samaritano, que é diferente do hebraico e era a forma de escrita usada antes do cativeiro babilônico (cerce de 597-586 a.C). Além da linguagem diferente existem outras discrepâncias entre o Texto Massorético e a Torá Samaritana. Um exemplo é que na versão Samaritanda dos 10 mandamentos Deus comanda o povo que construa o altar no Monte Gerizim. O Pentateuco Samaritano ficou conhecido mundialmente quando Pietro della Valle trouxe de Damasco em 1616 uma cópia do texto.

Mesmo assim essa versão do Texto Samaritano não é absoluta. Em Q'umran foram encontrados fragmentos do texto que combinam com o Texto Massorético, como por exemplo não trazer nenhuma referência ao Monte Gerizim.

A Versão dos Setenta ou Septuaginta Grega, designa a tradução grega do Antigo Testamento, elaborada entre os séculos IV e II a.C., feita em Alexandria, no Egito. O seu nome deve-se à lenda que referia ter sido essa tradução um resultado milagroso do trabalho de 70 eruditos judeus, e que pretende exprimir que não só o texto, mas também a tradução, fora inspirada por Deus. A Septuaginta Grega é a mais antiga versão do Antigo Testamento que conhecemos. A sua grande importância provém também do facto de ter sido essa a versão da Bíblia utilizada entre os cristãos, desde o início, e a que é citada na grande parte do Novo Testamento.

Da Septuaginta Grega fazem parte, além da Bíblia Hebraica, os Livros Deuterocanónicos (aceites como canónicos apenas pela Igreja Católica), e alguns escritos apócrifos (não aceites como inspirados por Deus por nenhuma das religiões cristãs ocidentais).

10 - E finalmente temos a Bíblia...


Ainda não.

Preste atenção que até o momento todas essas versões que vimos do Texto da Lei eram usadas por Judeus. Não haviam cristãos ainda no mundo, mesmo o texto massorético do século VI d.C. ainda diz respeito aos Judeus. E para entender o surgimento do que os cristãos chamam de Bíblia temos que entender o que era o cristianismo, e não estamos falando de Jesus.

Os Judeus sempre se dividiram em vários grupos, e todos eles em um determinado momento esperavam a vinda do Messias para unir o povo sob a Lei de Deus e trazer um período de paz. O advento do Cristianismo foi a divulgação que de esse Messias teria vindo, na figura de Jesus, e então através de Cristo o povo teria uma nova aliança com Deus.

Mas a importância disso foi a criação de uma nova crença. Os primeiros cristãos eram todos judeus, a briga começou quando começaram a defender que como a mensagem de cristo era para todos, que gentis - não judeus - poderiam compartilhar a mesma fé, deixando de lado costumes judaicos, como por exemplo a circuncisão. Veja que a circuncisão foi usada por Abrahão para mostrar que estava a serviço de Deus, desde então todo Judeu deveria ser circuncidado, imagine o que era então os cristãos judeus terem que aceitar pessoas que não faziam parte da crença serem aceitas sem obedecer a certos costumes.

Isso criou a necessidade de um material para divulgar a crença judaica - não havia novo testamento ainda - para os novos convertidos, que não eram judeus.

Quando o cristianismo começou a se espalhar pelo Império Romano nasceu então a necessidade de se traduzir os escritos sagrados para os cristãos que não liam nem grego nem hebraico.


Essa tradução surgiu no século I e foram realizadas por tradutores informais. Ficou conhecida como a Vetus Latina, podemos dizer que ela foi a primeira versão da Tanakh para cristãos e mesmo assim não era carregada debaixo do braço, era usada como forma de catequese.


11 - Então a primeira Bíblia Cristã surgiu no século I?


Não. A Vetus Latina não era uma bíblia ainda. Como dissemos ela foi feita por tradutores informais, isso significa que pedaços dos textos antigos, tanto os judaicos quanto os gregos eram traduzidos de acordo com a necessidade. Assim ela não era uma Bíblia Latina. Ela era mais uma gambiarra para poder mostrar ao povo que não estava familiarizado com os textos Judeus a religião, e então ter um texto que eles pudessem compreender quando se convertessem. E mesmo assim suas primeiras versões não traziam os textos conhecidos como o Novo Testamento.

Os textos da Vetus Latina chegaram até nós através de vários códices.

Os códices (ou codex, da palavra em latim que significa "livro", "bloco de madeira") eram os manuscritos gravados em madeira, em geral do período da era antiga tardia até a Idade Média. Manuscritos do Novo Mundo foram escritos por volta do século XVI.

O códice é um avanço do rolo de pergaminho e gradativamente substituiu este último como suporte da escrita. O códice, por sua vez, foi substituído pelo livro impresso.

Os mais conhecidos são:

Códice Bobienus (K) - séc. IV. É um manuscrito africano em Unçais. Contém fragmentos dos Evangelhos de Marcos e Mateus;

Códice Vercellensis (a) - Séc. IV. Texto em Unçais. Contém todos os quatro Evangelhos;

Códice Bezae (q) - Séc. V. É um manuscrito bilingüe, com o Grego no verso e o Latim na frente. Contém os quatro Evangelhos, Atos e 3 João;

Códice Monacensis 13 (q) - Séc. VI-VII. Texto em Unçais. Contém os quatro Evangelhos;

Palimpsest 53 (s) - Séc. VI. Conhecido também como Bobiensis ou Vindobonensis. Texto em meio unçal. Contém fragmentos dos Atos e as 14 Cartas Católicas.

Os textos da Vetus Latina organizados como um único livro foram encontrados em manuscritos tardios, datados do séc. XIII. Muitas das versões da Vetus Latina não foram consideradas autorizadas como traduções bíblicas que poderiam ser usadas por toda Igreja. A estas traduções precedentes, muitos estudiosos adicionam freqüentemente citações das passagens bíblicas que aparecem nos escritos dos Pais da Igreja Latina. Acredita-se que alguns deles compartilham da leitura de determinados grupos de manuscritos. Depois de comparar a leitura de Lucas 24,4-5 nos manuscritos da Vetus Latina, Bruce Metzger contou "não menos que 27 variações!".

Os livros bíblicos reunidos no conjunto de manuscritos disponíveis da Vetus Latina são:

VETUS TESTAMENTUM
Genesis
Exodus
Leviticus
Numeri
Deuteronomium
Josue
Judicum (Juízes)
Ruth
1-4 Regum (1 e 2 Reis (1 e 2 Samuel) e 3 e 4 Reis (1 e 2 Reis))
1-2 Paralipomenon (Paralipômenos ou Crônicas)
Esdras
Nehemias
3-4 Esdras
Tobit
Judith
Hester
Job
Psalmi (Salmos)
Proverbia
Ecclesiastes
Canticum Canticorum
Sapientia (Sabedoria de Salomão)
Sirach, Ecclesiasticus (Sabedoria de Sirac ou Eclesiástico).
Esaias (Isaías)
Jeremias (Lamentationes, Baruch)
Daniel
XII Prophetae (Doze Profetas)
I-II Macchabaeorum (1 e 2 Macabeus).

NOVUM TESTAMENTUM
Matthaeus
Marcus
Lucas
Johannes
Actus Apostolorum
Ad Romanos
Ad Corinthios I
Ad Corinthios II
Galatas
Ad Ephesios
Ad Philippenses
Colossenses
Ad Thessalonicenses
Timotheum
Ad Titum
Philemonem
Hebraeos
Epistulae Catholicae (1 e 2 Pedro; 1, 2 e 3 João; Tiago e Judas)
Apocalypsis Johannes

12 - E a Bíblia que existe hoje veio da Vetus Latina?


Não.


Como vimos, o texto "definitivo" - entre aspas porque ainda não é aceito por todo como unânime - do judaísmo, surgiu no século VI d.C., a versão destinada para cristãos ainda levou mais um tempo.

No século IV d.C. Dâmaso (hoje conhecido como São Dâmaso ou ainda como Papa Dâmaso I) pediu que Jerônimo (conhecido como São Jerônimo, o padroeiro dos bibliotecários e das secretárias), criasse uma versão autorizada da Bíblia na língua latina, a idéia era parar com a enormidade de textos avulsos que surgiam, traduzidos por pessoas diferentes conforme a necessidade individual e criassem um texto padrão, que pudesse ser usado por todos, e assim eles saberiam que um cristão da África havia recebido exatamente a mesma doutrina de um cristão da Espanha, por exemplo.

Jerônimo então revê a Septuaginta grega e os textos da Vetus Latina. E decide que vai começar tudo do zero. A este trabalho batiza de Vulgata. O nome vem da frase versio vulgata, isto é "versão dos vulgares", e foi escrito em um latim cotidiano, a versão antiga do "escrito em um latim moderno e popular".

Até então a Igreja[2] usava textos na língua grega, foi inclusive nesta língua que se escreveu todo o Novo Testamento, incluindo a Carta aos Romanos, de São Paulo, bem como muitos escritos cristãos de séculos seguintes.

A Vulgata foi produzida para ser mais exata e mais fácil de compreender do que suas predecessoras. Foi a primeira, e por séculos a única, versão da Bíblia que possuiu os textos do Velho Testamento traduzidos diretamente do hebraico e não da versão grega (a Septuaginta). No Novo Testamento, Jerônimo selecionou e revisou textos. Ele inicialmente não considerou canônicos os sete livros, chamados por católicos e ortodoxos de deuterocanônicos. Porém, trabalhos seus posteriores mostram sua mudança de conceito, pelo menos a respeito dos livros de Judite, Sabedoria de Salomão e o Eclesiástico (ou Sabedoria de Sirac), conforme atestamos em suas últimas cartas a Rufino.

13 - Perai, Jerônimo não considerou como canônico alguns livros? Mas quem decidia o que era canônico ou não? E o que é canônico?


Vamos começar de trás para frente.

Um cânone ou cânon normalmente se caracteriza como um conjunto de regras (ou, frequentemente, como um conjunto de modelos) sobre um determinado assunto, em geral ligado ao mundo das artes e da arquitetura. A canonização é a sistematização deste conjunto de modelos.Cânone, em hebraico é qenéh e no grego kanóni, têm o significado de "régua" ou "cana (de medir)", no sentido de um catálogo.


O Cânone Bíblico designa o inventário ou lista de escritos ou livros considerados pelas religiões cristãs como tendo evidências de Inspiração Divina.


E sobre quem decide que livro é canônico ou não, vamos ver isso um pouco mais a diante, para não perdermos o rumo.

14 - Bom, então com a criação da Vulgata nós temos uma Bíblia, ou ainda não?


Glória aos Céus! Agora sim.


Entre os anos de 1545 e 1563 a igreja católica realizou seu 19º concílio ecumênico, também conhecido como o Concílio de Trento. Ele foi convocado pelo Papa Paulo III para assegurar a unidade da fé (sagrada escritura histórica) e a disciplina eclesiástica. O concílio tem este nome em referência à cidade de Trento, onde transcorreu, e nele foi estabelecido um texto único para a Vulgata, a partir de vários manuscritos existentes, e oficializado como a Bíblia oficial da Igreja. Esta Bíblia ficou conhecida como Vulgata Clementina.

Após o Concílio Vaticano II, por determinação de Paulo VI, foi realizada uma revisão da Vulgata, sobretudo para uso litúrgico. Esta revisão, terminada em 1975, e promulgada pelo Papa João Paulo II em 25 de abril de 1979, é denominada Nova Vulgata, estabelecendo esta como a nova Bíblia oficial da Igreja Católica.

15 - Mas a Bíblia só passou a existir desta forma no século XVI, ou no século XX?
Não extamente. Existem alguns fatos que devem ser levados em consideração.

Por exemplo


Se levarmos em conta os textos sagrados, a Bíblia levou 1600 anos para ser escrita. Se pensarmos que ela começou a ser registrada na época de Moisés (cerca de 1500 a.C.) e terminou com o evangelho de João (cerca de 96 d.C.), essa é a datação cultural dos textos.

Mesmo assim na época do evangelho de João não havia unidade nos textos. Para se ter idéia, os textos só passaram a ser conhecidos como Bíblia com Jerônimo, que chamou pela primeira vez ao conjunto dos livros do Antigo Testamento e Novo Testamento de "Biblioteca Divina" (cerca de 347d.C. - 419/420 d.C.). "Bíblia”, inclusive, é uma palavra que não aparece na Bíblia. Ela vem do termo grego biblos, por causa da cidade fenícia de Biblos, um importante centro produtor de rolos de papiro usados para fazer livros. Com o tempo, a palavra biblos passou a significar “livro”. Biblia é a forma plural (“livros”).


Embora algumas obras afirmem que no Concílio de Nicéia (325 d.C.) discutiu-se quais evangelhos fariam parte da Bíblia não há menção de que esse assunto estivesse em pauta, nem nas informações dos historiadores do Concílio, nem nas Atas do Concílio que chegaram a nós em três fragmentos: o Símbolo dos apóstolos, os cânones, e o decreto senoidal.

No ano de 1740 foi publicado o Cânone Muratori - também conhecido por fragmento muratoriano ou fragmento de Muratori - descoberto na Biblioteca Ambrosiana de Milão por Ludovico Antonio Muratori (1672 – 1750). Na lista figuram os nomes dos livros que o autor desconhecido da lista considerava admissíveis, com alguns comentários. A lista está escrita em latim e encontra-se incompleta, daí ser chamada de fragmento.

Apesar de ser consensual datar o manuscrito como sendo do século VII, ele é cópia de um texto mais antigo, datado como tendo sido escrito por volta do ano 170, já que nele é falam do Pastor de Hermas e do papado de Pio I, morto em 157.

Os livros canônicos mencionados na lista são aproximadamente os mesmos que se consideram hoje como canônicos neo-testamentários, com algumas variações. O Cânone de Muraori aceita quatro evangelhos, dos quais dois são o Evangelho de Lucas e o Evangelho de João, não se conhecendo os outros dois, pois falta o princípio do manuscrito, onde estariam os nomes dos dois primeiros. A lista segue com os Atos dos Apóstolos e com 13 epístolas de Paulo de Tarso (não menciona a Epístola aos Hebreus). Considera falsificações as epístolas supostamente escritas por Paulo aos laodiceanos e a escrita aos alexandrinos. Nele só se mencionam duas epístolas de João, sem as descrever. Figura também no fragmento o Apocalipse de Pedro, ainda que com certas reservas ("o qual alguns dos nossos não permitem que seja lido na Igreja").

O Livro da Sabedoria do Antigo Testamento também é citado como sendo canônico.

No Cânone de Muratori está escrito:

"...aos quais esteve presente e assim o fez. O terceiro livro do Evangelho é o de Lucas. Este Lucas ´ médico que depois da ascensão de Cristo foi levado por Paulo em suas viagens ´ escreveu sob seu nome as coisas que ouviu, uma vez que não chegou a conhecer o Senhor pessoalmente, e assim, a medida que tomava conhecimento, começou sua narrativa a partir do nascimento de João. O quarto Evangelho é o de João, um dos discípulos.

Questionado por seus condiscípulos e bispos, disse: ´Andai comigo durante três dias a partir de hoje e que cada um de nós conte aos demais aquilo que lhe for revelado´. Naquela mesma noite foi revelado a André, um dos apóstolos, que, de conformidade com todos, João escrevera em seu nome.

Assim, ainda que pareça que ensinem coisas distintas nestes distintos Evangelhos, a fé dos fiéis não difere, já que o mesmo Espírito inspira para que todos se contentem sobre o nascimento, paixão e ressurreição [de Cristo], assim como sua permanência com os discípulos e sobre suas duas vindas ´ depreciada e humilde na primeira (que já ocorreu) e gloriosa, com magnífico poder, na segunda (que ainda ocorrerá).

Portanto, o que há de estranho que João freqüentemente afirme cada coisa em suas epístolas dizendo: ´O que vimos com nossos olhos e ouvimos com nossos ouvidos e nossas mãos tocaram, isto o escrevemos´? Com isso, professa ser testemunha, não apenas do que viu e ouviu, mas também escritor de todas as maravilhas do Senhor.

Os Atos foram escritos em um só livro. Lucas narra ao bom Teófilo aquilo que se sucedeu em sua presença, ainda que fale bem por alto da paixão de Pedro e da viagem que Paulo realizou de Roma até a Espanha.

Quanto às epístolas de Paulo, por causa do lugar ou pela ocasião em que foram escritas elas mesmas o dizem àqueles que querem entender: em primeiro lugar, a dos Coríntios, proibindo a heresia do cisma; depois, a dos Gálatas, que trata da circuncisão; aos Romanos escreveu mais extensamente, demonstrando que as Escrituras têm como princípio o próprio Cristo.

Não precisamos discutir sobre cada uma delas, já que o mesmo bem - aventurado apóstolo Paulo escreveu somente a sete igrejas, como fizera o seu predecessor João, nesta ordem: a primeira, aos Coríntios; a segunda, aos Efésios; a terceira, aos Filipenses; a quarta, aos Colossenses; a quinta, aos Gálatas; a sexta, aos Tessalonicenses; e a sétima, aos Romanos.

E, ainda que escreva duas vezes aos Coríntios e aos Tessalonicenses, para sua correção, reconhece - se que existe apenas uma Igreja difundida por toda a terra, pois da mesma forma João, no Apocalipse, ainda que escreva a sete igrejas, está falando para todas. Além disso, são tidas como sagradas uma [epístola] a Filemon, uma a Tito e duas a Timóteo; ainda que sejam filhas de um afeto e amor pessoal, servem à honra da Igreja Católica e à ordenação da disciplina eclesiástica. Correm também uma carta aos Laodicenses e outra aos Alexandrinos, atribuídas [falsamente] a Paulo, mas que servem para favorecer a heresia de Marcião, e muitos outros escritos que não podem ser recebidos pela Igreja Católica porque não convém misturar o fel com o mel.

Entre os escritos católicos, se contam uma epístola de Judas e duas do referido João, além da Sabedoria escrita por amigos de Salomão em honra do mesmo. Quanto aos apocalipses, recebemos dois: o de João e o de Pedro; mas, quanto a este último, alguns dos nossos não querem que seja lido na Igreja. Recentemente, em nossos dias, Hermas escreveu em Roma 'O Pastor', sendo que o seu irmão, Pio, ocupa a cátedra de Bispo da Igreja de Roma.

É, então, conveniente que seja lido, ainda que não publicamente ao povo da Igreja, nem aos Profetas ´ cujo número já está completo , nem aos Apóstolos ´ por ter terminado o seu tempo. De Arsênio, Valentino e Melcíades não recebemos absolutamente nada; estes também escreveram um novo livro de Salmos para Marcião, juntamente com Basíledes da Ásia..."

Então já na época haviam dúvidas a que textos eram de fato inspirados pelo Espírito de Deus e quais eram criações - sinceras ou não - de homens.

Além disso, a Bíblia sempre foi apresentada como um longo texto corrido, ela foi dividida em capítulos apenas no século XIII (entre 1234 e 1242), pelo teólogo Stephen Langhton, então Bispo de Canterbury, na Inglaterra, e professor da Universidade de Paris, na França. Foi apenas nos séculos IX e X que estudiosos Judeus dividiram o Antigo Testamento em versículos. O Novo Testamento recebeu a divisão em versículos no ano de 1551, o responsável foi um impressor francês chamado Robert d´Etiénne.

Até boa parte do século XVI, as Bíblias eram publicadas somente com os capítulos. Foi assim, por exemplo, com a Bíblia que Lutero traduziu para o Alemão, por volta de 1530. A primeira Bíblia a ser publicada incluindo integralmente a divisão de capítulos e versículos foi a Bíblia de Genebra, lançada em 1560, na Suíça.

E mesmo assim nem todas as Bíblias trazem os mesmos textos.

16 - Como assim? Até hoje em dia existem Bíblias diferentes?


Sim.


Apesar da antiguidade dos livros bíblicos, os manuscritos mais antigos que possuímos datam a maior parte do III e IV Século d.C.. Tais manuscritos são o resultado do trabalho de copistas (escribas) que, durante séculos, foram fazendo cópias dos textos, de modo a serem transmitidos às gerações seguintes. Transmitido por um trabalho desta natureza o texto bíblico, como é óbvio, está sujeito a erros e modificações, involuntários ou voluntários, dos copistas, o que se traduz na coexistência, para um mesmo trecho bíblico, de várias versões que, embora não afetem grandemente o conteúdo, suscitam diversas leituras e interpretações dum mesmo texto. O trabalho desenvolvido por especialistas que se dedicam a comparar as diversas versões e a seleccioná-las, denomina-se Crítica Textual. E o resultado de seu trabalho são os Textos-Padrão.

Ou seja, existe um esforço para se descobrir quais as formas originais dos textos que temos hoje, quais estariam mais próximos da forma como forma concebidos.


A grande fonte hebraica para o Antigo Testamento é o Texto Massorético, que como já vimos, foi fechada no século VI d.C.

Isso combinado com as várias igrejas que se formaram depois do Cristianismo serviram para que várias versões da Bíblia sobrevivessem até os dias de hoje, cada uma com características próprias.

17 - Mas com o cristianismo não houve um consenso sobre que textos fariam parte da Bíblia?

Infelizmente não.

E para isso vamos voltar ao conceito de Cânone Bíblico.

Segundo a literatura judaica Esdras, na qualidade de escriba e sacerdote, presidiu um conselho formado por 120 membros chamado Grande Sinagoga, que teria selecionado e preservado os rolos sagrados. Alguns acreditam que naquele tempo o Cânone das Escrituras do Antigo Testamento foi fixado (Esdras 7:10,14). Entretanto esta tese é desacreditada pela crítica moderna. Os estudiosos concordam que foi essa mesma entidade que reorganizou a vida religiosa nacional dos repatriados e, mais tarde, deu origem ao Supremo Tribunal Judaico, denominado Sinédrio.

Curiosamente os Saduceus e os Samaritanos só aceitavam como canônicos os cinco livros de Moisés. Por esta razão, os especialistas especulam que Esdras tenha reunido apenas o Pentateuco, isto é, os cinco livros de Moisés.

O prólogo da versão grega do Eclesiástico, datado em 130 a.C parece já confirmar a suspeita dos estudiosos modernos. Com efeito nele lemos: "Pela Lei, pelos Profetas e por outros escritores que os sucederam, recebemos inúmeros ensinamentos importantes (...) Foi assim que após entregar-se particularmente ao estudo atento da Lei, dos Profetas e dos outros Escritos, transmitidos por nossos antepassados [...]".

Nota-se que o cânon indicado neste escrito considera canônicos livros posteriores ao tempo dos profetas.

O Cânone Hebraico de 39 livros, só foi realmente fixado no Concílio de Jâmnia - criado para procurar um rumo para o judaísmo, após a destruição do Templo de Jerusalém, no ano 70 d.C - em 90d.C.. Mesmo assim estudiosos como Leonard Rost garantem que tais decisões demoraram muito para serem aceitas e até hoje não tiveram aceitação em algumas comunidades judaicas; como o caso dos judeus do Egito.

Neste concílio os participantes decidiram considerar como textos canônicos do judaísmo apenas os que existiam em língua hebraica e que remontassem ao tempo do profeta Esdras, rejeitando todos os outros livros e demais escritos, considerando-os como apócrifos, ou seja, não tendo evidências de inspiração por Deus e fonte de fé. Houve muitos debates acerca da aprovação de certos livros, como Ester e Cântico dos Cânticos, conforme registro da Mishiná.

Apesar da crítica moderna afirmar que vários livros que constam no Cânon Hebraico são posteriores ao tempo de Esdras (como é o caso do Livro de Daniel), os estudiosos explicam que os Fariseus não dispunham do método científico que existe hoje para se datar uma obra, ou mesmo para se atribuir a ela um autor. De qualquer forma, os critérios por eles adotados excluíram os livros deuterocanônicos do Cânon Hebraico.

Para não confundir: o Concilio de Jâmnia (ano 90 d.C.) decidiu quais os livros que fariam parte do cânon. Os Massoretas, século VI, decidiram qual a forma correta dos textos que haviam sido selecionados.

Além disso no início não havia uma Igreja organizada, como hoje e desde o tempo de Jesus, entre seus discípulos, sempre existiram controvérsias doutrinárias e disciplinares, como se vê em At 15, 1-5. Havia grupos em Roma, no Oriente e norte da África, que sob influência helenística, zoroastrista e de convicções pessoais, que queriam adaptar a doutrina de Jesus às suas idéias. Tais foram os grupos dissidentes ou heréticos fundados por Donato, a gnose de Marcion (o "Primogênito de Satanás"), Montanus, Nestório, Paulo de Samósata e Valentinus entre outros. Os escritos de Tertuliano contra os heréticos e o "Contra as heresias" de Ireneu foram respostas às heresias. O Concílio de Nicéia foi convocado pelo imperador Constantino devido a disputas em torno da natureza de Jesus "não criado, consubstancial ao Pai". Na Santíssima Trindade, as três pessoas têm a mesma natureza, ou seja, a divina.

Então apesar do Antigo Testamento já ter uma aceitação mais ou menos geral de que textos eram inspirados e quais não eram, o Novo Testamento ainda não possuía unidade. Mesmo com tentativas como a do Cânone Muratori, 170 d.C., o Novo Testamento ainda era um Deus nos Acuda, já que as pessoas ainda não tinham nem muita certeza sobre o que era o Cristianismo.

A partir de 325, algumas verdades do Cristianismo foram estabelecidas como dogma através de cânones promulgados pelo concílio de Nicéia, dentre outros.

Desde Jesus Cristo (Jo 17,21) passando por todos os apóstolos, especialmente São Paulo, existe um impulso para estabelecer unidade no cristianismo. A primeira forma de demonstração desse impulso foi a manutenção da unidade em torno de Pedro. Se há um só Deus, que se revelou em Jesus Cristo, que fundou Sua única Igreja (Mt 16,18) e se Jesus Cristo mesmo diz que Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida, não podem existir outras verdades verdadeiras. Uma das linhas que foi condenada como heresia eram as que divergiam da afirmação de que Cristo era totalmente divino e totalmente humano e que as três pessoas da Trindade são iguais e eternas. Este dogma (Um só Deus em Três Pessoas = Três pessoas e uma só natureza divina assim como existem bilhões de pessoas e uma só natureza humana) só foi estabelecido depois que Ário, um celebrado professor do cristianismo - e também mártir - o desafiou.

E assim, muitos textos que poderiam fazer parte da Bíblia foram banidos, por serem considerados heréticos.

E ai voltamos ao cíclo vicioso da falta de gráficas, porque uma vez definidos os textos que fariam parte da Bíblia Cristã, eles estavam sujeitos à manipulação por parte dos copistas (seja essa manipulação causada por erro sincero ou pela maldade no coração do homem).

18 - Então além do Antigos Testamento, e dos livros do Novo Testamento, haviam outros livros e textos religiosos circulando por ai?
Sim, tecnicamente esses livros receberam dois nomes: Deuterocanônicos e Apócrifos.

O termo "deuterocanônico" é formado pela raiz grega deutero (segundo) e canônico (que faz parte do Cânon, isto é do conjunto de livros considerados inspirados e normativos por uma religião ou igreja). Assim, o termo é aplicado a livros e partes de livros bíblicos que só num segundo tempo foram considerados como canônicos.

O adjetivo "deuterocanônico" é originalmente aplicado a estes textos pelos cristãos, que depois de um tempo passaram a encará-los como inspirados e fazendo parte integrante da Bíblia.


O fato de não os considerarem inspirados por alguns, não caracteriza o descarte ou na desvalorização desses livros. Hoje eles são considerados patrimônios históricos da fé, pois refletem e fizeram parte das crenças cristãs ao longo da História, sendo portanto de grande valor literário e religioso.

São deuterocanônicos os seguintes livros bíblicos:

- Tobias
- Judite
- I Macabeus e II Macabeus
- Sabedoria
- Eclesiástico (também chamado Sirácide ou Ben Sirá )
- Baruc

Fora os livros deuterocanônicos podemos também encontrar fragmentos deuterocanônicas dentro de livros canônicos como:

- adições em Ester
- adições em Daniel - nomeadamente os episódios da Casta Susana e de Bel e o dragão

Estes livros eram já conhecidos pelos cristãos, que os citavam e utilizavam. Os estudiosos encontraram citações destes livros nas obras de Ireneu, Justino, Agostinho, Jerônimo, Basílio Magno, Ambrósio e muitos outros. Por sua vez eram considerados somente eclesiásticos por outros, isto é, não canônicos porém não contrários à Fé. Foi o caso de Melitão, Rufino, Atanásio e outros. Como podemos ver o assunto não era pacífico, e houve bastante desacordo sobre o tema.

Jerônimo inicialmente negou a canonicidade dos deuterocanônicos. Porém, os estudiosos encontraram uma mudança posterior de sua opinião em suas cartas escritas a Rufino e a Paulino, Bispo de Nola.

Mas no fim das contas esta discordância parece ter sido resolvida depois, ou então não influenciou o parecer comum da Igreja Antiga.

Nenhum Concílio da Igreja Primitiva recusou a canonicidade destes livros, ao contrário. Foram declarados canônicos nos Concílios regionais de Roma (382 d.C, dando origem ao Cânon Damaseno), Hipona I (cânon 36, 393 d.C), Cartago III (cânon 47, 397 d.C), IV (cânon 24, 417 d.C), Trullo (cânon 2, 692).

Um documento conhecido como Decreto Gelasiano (496 d.C) também confirma a canonicidade dos deuterocanônicos.

A aceitação comum dos deuterocanônicos como livros sagrados pode-se ainda atestar nas primeiras versões Bíblicas, como a Vetus Latina e a Vulgata. No Oriente, a Septuaginta foi adotada como a versão oficial do Antigo Testamento.

Os livros deuterocanônicos foram escritos entre Malaquias e Mateus, ou seja, numa época em que segundo o historiador judeu Flávio Josefo, cessara por completo a revelação divina. Entretanto segundo os Evangelhos a revelação do Antigo Testamento durou até João Batista (cf. Mt 11,12-13 e Lc 16,16).

Os textos deuterocanônicos chegaram até nós apenas em grego (alguns escritos originalmente nessa língua, outros traduzidos duma versão hebraica, que se perdeu), fazendo parte da Septuaginta. Tais textos não se encontram na Tanakh.

É importante dizer que também no Novo Testamento existem livros deuterocanônicos. São eles:

- Tiago
- Hebreus
- Apocalipse
- 2 Pedro

- 2 e 3 João.


Assim como os livros deuterocanônicos do Antigo Testamento, estes também tiveram sua canonicidade contestada por muitos séculos.

E mesmo depois deste tempo todo ainda não havia consenso. Martinho Lutero, o reformista da Igreja Católica e pai do Protestantismo, chegou até mesmo não considerar canônicos Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse, que na sua tradução da Bíblia para o Alemão deixou-os num apêndice sem numeração de páginas. Depois os demais reformadores decidiram que estes livros deveriam voltar à Bíblia, pela larga utilização nas comunidades cristãs, mas não fizeram o mesmo com os deuterocanônicos do AT.

No início do séc. XV, um grupo dissidente da Igreja Copta (também chamados de Monofisistas), conhecidos como Jacobitas questionaram o Cânon Alexandrino entre outras coisas. Em 1441, O Concílio Ecumênico de Florença, através da Bula Cantate Domino (4/2/1442) reafirma o caráter canônico do Cânon Alexandrino.

Com a Reforma Protestante, Lutero volta a questionar o caráter canônico dos Deuterocanônicos negando inclusive seu caráter eclesiástico, pois para ele estes livros eram contrários à Fé. Em 1545, é convocado o Concílio de Trento, que novamente afirma o caráter canônico do Cânon Alexandrino.

No início não houve consenso entre os Protestantes sobre o Cânon do Antigo Testamento. O Rei Jaime I da Inglaterra, responsável pela famosa tradução KJV (King James Version), defendia que os Deuterocanônicos deveriam continuar constando nas Bíblias Protestantes. Praticamente na mesma época surgiu uma tradução conhecida como Bíblia de Geneva ou Genebra, que caracterizava os Deuterocanônicos como apócrifos.

Somente após a "Confissão de fé de Westminster" (séc. XVII), protestantes ingleses que eram influenciados pelo calvinismo e puritanismo removeram das suas listas os livros deuterocanônicos, passando a adotar como lista de composição do Antigo Testamento o Cânon Hebraico conforme instituído no Concílio de Jâmnia. Princípios desta confissão foram espalhando-se por várias denominações e seu conteúdo funcionou como resposta ao concílio de Trento.

Muitos cristãos protestantes têm denominado esses livros como "apócrifos"; por alegarem que neles existam erros geográficos e que não haja concretização de fatos narrados nesses livros, chegando a abdicarem da utilização dos mesmos nas suas listas, não os considerando divinamente inspirados.

Outro argumento apontado é de que foram escritos no período intertestamentário (período de 400 anos compreendidos entre o novo e o velho testamento), ou seja em um período que segundo os teólogos reformadores Deus não teria levantado nenhum profeta. Período também conhecido como "silêncio profético" , fazendo com que não reconheçam estes livros como fazendo parte da palavra de Deus.

Então se formos tentar colocar ordem nesta bagunça:

Os deuterocanônicos já faziam parte da vida dos judeus através Septuaginta, da Vetus Latina e da Vulgata. A primeira Bíblia impressa da história, conhecida como a Bíblia de Gutenberg (1450-1455) também já continha os livros deuterocanônicos do Antigo Testamento. Eles estavam presentes mesmo nas primeiras versões protestantes como a KJV (King James Version).

Já os Apócrifos, do grego Apokruphoi, secreto, separado ou excluído, eram conhecidos como Livros Pseudo-canônicos. O termo "apócrifo" foi cunhado por Jerônimo, no quinto século, para designar basicamente antigos documentos judaicos escritos no período entre o último livro das escrituras judaicas, Malaquias e a vinda de Jesus Cristo. São livros considerados não inspirados e portanto não entraram no Cânon.

No cristianismo ocidental atual existem vários livros considerados apócrifos; nos sínodos realizados ao longo da história esses livros foram banidos do canon, outros obtiveram uma reconsideração e retornaram à condição de Sagrados.

O número dos livros apócrifos é maior que o da Bíblia canônica. É possível contabilizar 113 deles, 52 em relação ao Antigo Testamento e 61 em relação ao Novo. A tradição conservou outras listas dos livros apócrifos, nas quais constam um número maior ou menor de livros. A seguir, alguns desses escritos segundo suas categorias.

Evangelhos:

- de Maria Madalena
- de Tomé
- Filipe
- Árabe da Infância de Jesus
- do Pseudo-Tomé
- de Tiago
- Morte e Assunção de Maria
- Judas Iscariotes

Atos:


- de Pedro
- Tecla e Paulo
- Dos doze apóstolos
- de Pilatos

Epístolas:


- de Pilatos a Herodes
- de Pilatos a Tibério
- dos apóstolos
- de Pedro a Filipe
- Paulo aos Laodicenses
- Terceira epístola aos Coríntios
- de Aristeu

Apocalipses:


- de Tiago
- de João
- de Estevão
- de Pedro
- de Elias
- de Esdras
- de Baruc
- de Sofonias

Testamentos:


- de Abraão
- de Isaac
- de Jacó
- dos 12 Patriarcas
- de Moisés
- de Salomão
- de Jó

Outros:


- A filha de Pedro
- Descida de Cristo aos Infernos
- Declaração de José de Arimatéia
- Vida de Adão e Eva
- Jubileus
- 1,2 e 3 Henoque
- Salmos de Salomão

- Oráculos Sibilinos

E isso para citar alguns. Agora para responder à pergunta: que parâmetros eram usados para definir que um texto era inspirado?

A resposta é simples: o bom senso de quem fazia a seleção, o poder que ele exercia sobre os seguidores e a resposta dos seguidores.

Se a Igreja havia decidido que Jesus era uma manifestação da Divina Trindade, todos os textos que o mostrassem como um simples homem eram descartados. No evangelho de Judas por exemplo, Jesus ri dos apóstolos que prestam culto ao Deus dos Judeus, YHVH, dizendo que aquele não é o criador, e sim um demente responsável pela dor no mundo. Ainda em outros Jesus enquanto criança mata as pessoas apenas com a Palavra, ou ainda para justificar seu nascimento de uma virgem descrevem o parto em que a criança sai da orelha de Maria. Não nos cabe aqui decidir que por exemplo nascer de um ouvido é absurdo enquanto voltar da morte e andar por ai não é, mas esta é a idéia. Uma vez decidido, com base na crença estabelecida, quais as qualidades e características da fé, eram separados aqueles textos que pregassem contra a fé. Se num texto Jesus diz que a Igreja de Deus é o mundo e não um prédio feito de tijolos, os pais da igreja feita de tijolos o excluía, e por ai a fora. E, finalmente, a aceitação. Não adiantava chegar para um grupo de cristãos que havia sido criado com a idéia de que Cristo era apenas um homem e tentar forçar goela a baixo que ele era parte de uma trindade divina e assim uma manifestação de Deus, esse texto simplesmente não seria aceito. Como de fato não foi. E isso fazia com que o grupo que dizia que Jesus era Deus brigasse com o grupo que dizia que ele não era, e assim o grupo mais forte conseguia acabar com os documentos dos mais fracos (acusados de heresia) e muitas vezes com os próprios cristãos (e você achando que a igreja só caçava bruxas e pagãos).

19 - Mas a Bíblia é uma zona!
Sim, mas só se você parar para pensar a respeito.


Vamos tentar criar aqui duas linhas do tempo, a primeira a cultural que representa como a Bíblia teria sido desenvolvida de acordo com a história que ela mesma conta:

A Bíblia como a que você compra hoje em uma loja foi escrita por um período de 1500/1600 anos, por cerca de 40 pessoas diferentes com profissões, origens culturais e classes sociais diferentes. Para quase todos os Judeus e Cristãos ela é a Palavra de Deus, ou seja, muito mais do que simplesmente um livro.

Ela teria sido escrita da época de Moisés entre 1592 a.C. e 1472 a.C. aproximadamente, até o último livro, o Apocalipse de São João, datado de cerca de 96 d.C., tendo passado por um período sem registros inspirados por Deus, o "silêncio profético", que separou a época do Antigo Testamento (Judeus) do Novo Testamento (Cristãos), esse período foi de aproximadamente 400 anos.

Então lá pelo ano de 96 d.C. a Bíblia com textos de mais de 1600 anos de tradição estaria, em tese, pronta para circular.

Agora uma pausa para os cínicos de plantãos ou aqueles simplesmente confusos até agora. Nós estamos passando por uma revisão ortográfica que está definindo a nova regra da escrita da língua portuguesa. Um exemplo é a palavra Bem-Vindo sendo atualizada para Benvindo.


Se no ano de 2500 fossem realizar um estudo de capachos de portas para se publicar um desses livros de mesa eles teriam várias fotos de capachos dizendo SEJA BEM-VINDO anteriores a 2009 e várias fotos com capachos dizendo SEJA BENVINDO posteriores a esta data. Mesmo hoje em dia com a midia que temos e a pressão social de aceitar mudanças, podemos apostar que pelos próximos anos ainda serão produzidos capachos com os dizeres BEM-VINDO, ou seja a forma que o texto foi escrito no capacho não é indicativo de que ele date de antes de 2009 ou depois de 2009.


Vamos dizer que lá pelo ano de 2050 surjam os puristas que defendem que se as pessoas estudadas se reunem e decidem que BENVINDO é a melhor forma de se escrever algo então é porque deve ser seguido, pode se surgir uma lei do INMETRO que defina que os capachos só poderão chegar no mercado caso tenham a grafia correta do termo. Ai podemos chamar esta manifestação de o primeiro Concílio de BENVINDO.

Acontece que isso acaba influenciando os maiores centros comerciais, cidades afastadas ou fabricantes de capacho que não ligam para a lei podem continuar com a sua grafia errada e assim teríamos os primeiros hereges - sejam conscientes (eu não vou comprar uma máquina nova que imprima a palavra nova), sejam os inocentes (mudou a palavra? eu não sabia).

Agora temos que levar em conta também outro fator, os capachos que tinham a grafia BENVINDO antes da mudança da norma ortográfica, ou seja, aqueles que já estavam errados antes do errado virar certo.

Só ai já teríamos problemas, 400 anos depois, de datar um capacho, simplesmente pela grafia de uma palavra, ele poderia ser anterior à data do Concílio de BENVINDO, poderia ser posterior, poderia ser um erro mais antigo ou poderia ser um capacho com a escrita antiga "gambiarrado" para apresentar a nova sem ter que mudar as máquinas, com um M deformado e o espaço entre as palavras coberto por um desenhinho qualquer.

Como isso se aplica à Bíblia?

Só porque um texto foi tomado como correto no século VI d.C. não significa que ele já não existisse 1600 anos antes. Da mesma forma dois textos diferentes não querem dizer automaticamente manipulação maldosa. E um texto que só se tornou oficial em um ano X não era sem valor antes. E não quer dizer que a palavra e o conceito Bem-Vindo não existia antes da correção ortográfica.

Vamos ver então como fica a história da Bíblia em termos de registros históricos:

640 a.C - Data em que se criou uma unidade doutrinária necessária para o reconhecimento da lei escrita.

287 - 247 a.C. - Criação da Septuaginta

225 a.C. - Trecho bíblico mais antigo: passagem de um dos livros de Samuel.

100 a.C. - O texto mais antigo conhecido da Bíblia: Livro de Isaías

0-100 d.C. - Vetus Latina & suposta época da composição do Novo Testamento

90 d.C. - Concilio de Jâmnia decidiu quais os livros que fariam parte do cânon judaico (Antigo Testamento)

125 d.C. - Texto mais antigo do Novo Testamento: fragmentos do evangelho de João, incluindo a pergunta de Pilatos a Jesus: “Você é o rei dos judeus?”


325 d.C. - Canonização do Novo Testamento

404 d.C. - Jerônimo completa a Vulgata.

500-600 d.C. - Texto Massorético (Antigo Testamento)

500 d.C. - A Bíblia começa a ser traduzida para mais de 500 línguas diferentes.

600 d.C. - Cria-se a Lei que determina que a Bíblia apenas pode ser copiada e distribuída em Latim.

995 d.C. - Surgem novas traduções anglo saxônicas da Bíblia do Novo Testamento.

1384 d.C. - Wycliffe se torna a primeira pessoa a se criar uma versão completa da Bíblia em Inglês (era uma versão manuscrita).

1455 d.C. - Gutenberg cria a primeira Máquina de Impressão e a partir de então as bíblias podem ser produzidas em massa. Até então todas as versões eram manuscritas.

1560 d.C. - Bíblia de Genebra

1611 d.C. - Surgimento da versão da Bíblia do Rei James.

1753 d.C. - Primeira publicação de uma Bíblia em Português.

1844 d.C. - Sociedade Bíblica Internacional traduz a Bíblia para os últimos idiomas vivos que restavam.

1885 d.C. - Os livros considerados apócrifos são removidos das versões impressas das Bíblias Protestantes.

1898 d.C. - Os Gideões Internacionais levam a Bíblia para as prisões, escolas e favelas, hoje qualuqer quarto de hotel ou motel americano possui uma versão desta Bíblia.

1993 d.C. - Biblegateway.com é o primeiro site a colocar a Bíblia na internet com ferramenta de busca e diversas traduções sincronisadas.

20 - Mas existem muitas diferenças entre essas Bíblia?
Novamente a resposta é positiva, e não apenas entre as Bíblias, mas entre as Bíblias e os textos originais.

Tenha em mente que este texto não tem como objetivo julgar se a Bíblia é um livro sagrado ou uma arma de manipulação popular, e sim estudar fatos que estejam relacionados com ela.

Como já vimos, mesmo os textos em hebraico da torá possuem algumas diferenças, como no caso do pentateuco samaritano e outros que existiam. A que se devem estas diferenças? Não há como dizer.


Um grande ressentimento moderno contra a Igreja Católica afirma que todos foram causados como forma de garantir que a igreja tivesse poder e riquezas, e mesmo que este seja o caso em alguns momentos não existe como provar isso - não que houve ou não manipulação, mas que ela foi realizada com este ou aquele objetivo específico. Muitas pessoas dizem que a igreja adotou o celibato dos padres, por exemplo, como forma de impedir que eles tivessem família e assim suas posses acumuladas em vida retornassem à igreja. Será que isto é verdade? Se pensarmos que tanto o judaísmo quanto o cristianismo sempre possuíram grupos ascetas, que renunciavam a existência mundana em prol da vida espiritual, chegando a casos extremos como monges que se flagelavam, castrações e outras, podemos ver que muitos dos primeiros cristãos eram adeptos do celibato, e que quando a igreja foi fundada e o cristianismo foi adotado como religião oficial de Roma o celibato já era um costume que mesmo que não obrigatório, era muito comum, não apenas para aqueles que o pregavam, mas para aqueles que o tinham como religião pessoal. Então mesmo que afirmemos que a igreja tomou proveito disto não podemos afirmar com certeza que ela oficializou este hábito baseada na cobiça assim como não temos como negar que este hábito também foi muito lucrativo para ela.

Assim, não vamos apontar dedos para que diferenças foram criadas por que motivos, mas apontar algumas delas para mostrar que mesmo que a Bíblia seja tomada como um livro absoluto, os textos impressos em suas páginas não o são.

Vamos começar levantando algumas mudanças que já ocorreram nas origens de seus textos.

Originalmente foram utilizados três idiomas diferentes na escrita dos diversos livros da Bíblia: o hebraico, o grego e o aramaico. Em hebraico foi escrito todo o Antigo Testamento, com excepção dos livros chamados deuterocanônicos e de alguns capítulos do livro de Daniel, que foram redigidos em aramaico. Em grego, além dos já referidos livros deuterocanônicos do Antigo Testamento, foram escritos praticamente todos os livros do Novo Testamento. Segundo a tradição cristã, o Evangelho de Mateus teria sido primeiramente escrito em hebraico, visto que a forma de escrever visava alcançar os judeus.

O hebraico utilizado na Bíblia não é todo igual. Encontramos em alguns livros o hebraico clássico (por ex. livros de Samuel e Reis), em outros um hebraico mais rudimentar e em outros ainda, nomeadamente os últimos a serem escritos, um hebraico elaborado, com termos novos e influência de outras línguas circunvizinhas. O grego do Novo Testamento, apesar das diferenças de estilo entre os livros, corresponde ao chamado grego koiné (isto é, o grego "comum" ou "vulgar", por oposição ao grego clássico), o segundo idioma mais falado no Império Romano.

Precisamos então nos lembrar de que a Torá foi traduzida do hebraico (as diferentes formas de hebraico que foram compiladas por séculos) para o grego na criação da Septuaginta, termos primitivos, rebuscados, simples e de uso diário foram passados para uma forma corrente de grego, um mesmo estilo de grego do princípio ao fim e então essa versão assim como a hebraica foram traduzidas para o latim da Vetus Latina. Com Jerônimo a Septuaginta é deixada de lado e ele pega todos os textos antigos - com suas variantes linguísticas - e são novamentes traduzidas para um latim de um único estilo, mas isso não fez com que as versões da Vetus Latina fossem recolhidas do mercado, elas existiam de forma paralela e quando o cristianismo se espalha surgem novas traduções para línguas locais, essas traduções não vinham de um único documento oficial, mas dos textos que cada um tinha a mão. Então enquanto uma versão Romena pudesse vir do Latim de Jerônimo, uma versão alemã poderia vir do grego da Septuaginta e um texto espanhol ter vindo de um dos muitos livros da Vetus.

Embora a mensagem geral destes textos fossem a mesma muitas coisas surgiam, eram adaptadas ou simplesmente mudavam.

Vejam um exemplo: pegando-se o texto da Tanakh de Oséias que usamos na questão quatro:

Oséias 8:12: "Se tivesse escrito a maioria de minha Torá, [Israel] seria contado igual a estranhos"

Vamos comparar com uma tradução atual da versão Almeida da Bíblia Corrigida e Revisada Fiel de 1994:


Oséias 8:12: "Escrevi-lhe as grandezas da minha lei, porém essas são estimadas como coisa estranha"

Com a versão da Sociedade Bíblica Britânica:

Oséias 8:12: "Embora eu lhe escreva a minha lei em miríades de preceitos, estes são tidos como coisa estranha"

Dentre as versões cristãs não existe muita diferença no significado, mas veja a diferença entre a passagem judaica e a passagem cristã. Numa o recado é para o povo escolhido, na outra o recado é para todos os não cristãos, independentes da origem do cristão em questão. Não há porque segregar o conhecimento apenas aos judeus, mas ele deve ser aberto aos que acreditam e aos que não acreditam.

Qual das duas versões você acha que deve ser mantida hoje? E quando for pensar nisso, pense que esta é a Palavra de Deus, e por isso deveria ser passada adiante de forma mais fiel o possível.

Outro caso que acontece não é apenas mudar o público alvo de determinada passagem, mas de se criar novas figuras na história. Vamos prestar atenção em uma que talvez tenha se tornado a mais célebre de todas: o diabo!

O Diabo se tornou, acidentalmente ou não, uma das figuras centrais da religião hoje em dia, mas ele não esteve sempre presente na Bíblia.

Um dos nomes atribuídos ao diabo é Lúcifer, mas este nome não existe nos textos originais. A primeira vez que este nome é citado é no livro de Isaías quando Deus protege seu povo destruindo o orgulho de seu inimigo. Em Isaías 14:13 surge a frase: "Como caíste do céu, ó Lúcifer, filho da alva!". No original a expressão utilizada não era o nome Lúcifer e sim helel bem shahar, que significa aquele que brilha. Quando traduziram esta passagem para o grego o termo foi traduzido por um que era conhecido dos gregos eosphorus e então para o latim Lucifer. Agora Lucifer era a tradução literal para "aquele que brilha" - lux, lucis = luz; ferre = carregar - o portador da luz. Ao mesmo tempo era como era conhecido o planeta Vênus, a estrela da manhã, que brilhava em pleno dia. Desta forma, apenas por causa de traduções o termo helel - aquele que brilha - se torna eosphorus grego - o portador do archote - pois era o termo mais próximo de aquele que brilha, e então para Lucifer em latim que era o termo mais próximo nesta linguagem, só que lúcifer é o nome da estrela da manhã, Vênus, a estrela da alvorada.

Entretanto o nome de "Estrela d'alva", ou Lúcifer, foi interpretado como sendo o nome de Satanás antes de sua queda do Paraíso. Segundo esta interpretação Lúcifer e seus anjos caíram por sua própria escolha, o motivo teria sido o orgulho, representado pela tentativa de se equipararem a Deus. Desejavam colocar sua própria vontade no lugar da vontade de Deus. E isto era considerado como a base do pecado em todos os níveis. Aos poucos, estas idéias começaram a se transformar na base dos ensinamentos tradicionais sobre o Diabo.

Mas se este trecho não fala do Diabo, fala do que? De acordo com os textos originais podemos supor que trata-se de uma interpretação errônea do seguinte trecho de Isaías que fala da "morte do rei da Babilônia" Nabucodonosor (Nebukadneççar em hebraico), que recebeu a maldição suprema da privação da sepultura:

«Como caíste do céu,
ó estrela dálva, filho da aurora!Como foste atirado à terra,vencedor da nações!E, no entanto, dizias no teu coração:'Hei de subir até o céu,acima das estrelas de Deus colocarei o meu trono,estabelecer-me-ei na montanha da Assembléia,nos confins do norte.Subirei acima das nuvens, tornar-me-ei semelhante ao Altíssimo.'E, contudo foste precipitado ao Xeol,nas profundezas do abismo".Os que te vêem fitam os olhos em ti,e te observam com toda atenção, perguntando:"Porventura é este o homem que fazia tremer a terra,que abalava reinos?"»(Isaías 14, 12-15)

Isaías compara a queda do rei Nabucodonosor à Lúcifer! A queda do rei seria semelhante à queda da estrela da manhã - planeta Vênus no céu - ou seja, uma queda muito rápida.


E assim o diabo ganha o nome de Estrela da Manhã e Lúcifer, o que é irônico se pensarmos que este nome também é dado para Jesus no Apocalipse de São João 22:16: " Eu, Jesus, enviei o meu anjo para vos testificar estas coisas a favor das igrejas. Eu sou a raiz e a geração de Davi, a resplandecente estrela da manhã."

O mesmo podemos dizer sobre o nome Satã. Satã surge nos textos hebraicos originais como um adjetivo e não como um nome. Satã significa Adversário, mas não necessariamente o Adversário de Deus. Por exemplo a passagem 1Samuel 29:4, sobre o que pedem os príncipes filisteus a Davi, surge em algumas versões da Bíblia como: "Não se volte contra nós no combate", mas no texto hebraico original está "Não se torne satã (inimigo) nosso no combate". Davi aplica o termo satã aos homens que se opõem à vontade de Deus tentando o rei para que mate o benjaminita que o injuriou. Satã significa a oposição humana a Deus.

Outro exemplo é o livro de Jó 1:6, que se refere a um dos filhos de Deus que se apresenta diante do trono. O nome que lhe é dado é Satã. O nome comum representa o cargo de acusar e também a adversidade, a inimizade, a oposição que é permitida ou sancionada por Deus.

O próprio termo Diabo surge de uma tradução. O Livro da Sabedoria foi escrito em grego e não temos como saber qual seria a palavra escolhida pelo autor se o tivesse escrito em hebraico. O autor utiliza a palavra grega diábolos, termo usado na Septuaginta como tradução da palavra hebraica Satã: "É por inveja do Diabo que a morte entrou no mundo" (Sb 2,24).
Assim, no Antigo Testamento Satã não representa um ser que possamos considerar um demônio no sentido cultural cristão de um ser sobre-humano e perverso. O nome Satã, ou Satanás, no Antigo Testamento personifica a inimizade, dificuldade, contradição. A palavra satã, na sua forma verbal, stn em hebraico, aparece seis vezes no Antigo Testamento (Zc 3,1; Sl 38,21; Sl 71,13; Sl 109,4; Sl 120,29). Poderia ser traduzida por "satanizar". A Septuaginta geralmente traduz o verbo stn por endiabállo, em grego; caluniar nas línguas vernáculas (e o substantivo satã, a Septuaginta geralmente o traduz por diábolos, que significa caluniador). A Bíblia de Jerusalém geralmente traduz por acusar.
E por causa dessas traduções se cria uma figura Mitológica do demônio.
Hoje é praticamente impossível se separar o Maligno do cristianismo, os protestantes são a prova viva disso. E agora essas traduções ajudam a incorporar novas culturas e não apenas demônios mas encostos atormentam aqueles que escolhem trilhar o caminho apontado por Cristo.
Para não nos estendermos muito mais neste assunto vamos dar mais dois exemplos rápidos de como uma tradução pode mudar um texto original, seja de maneira sutil e inofensiva ou de uma forma mais agressiva.
Em Mateus 3:4 lemos que Jesus afirmou que: "E, outra vez vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus."
Apenas neste trecho encontramos dois problemas com tradutores do grego para outras línguas.
Apesar de ser uma mensagem clara de que a humildade é o caminho que leva a Deus e não a cobiça esta passagem ficou muito exagerada.
Por um lado temos a palavra camelo. Além do animal existia outro camelo que os gregos conheciam, que era uma corda utilizada por pescadores muito grossa. Assim poderíamos entender que é mais fácil se passar uma corda grossa por um buraco de agulha do que um rico entrar nos céus. Apesar de ser uma idéia que de cara exclui automaticamente os ricos, sejam quem forem ou seja lá qual foi o método de se conseguir suas riquezas entrar no céu, fica uma metáfora menos exagerada. Agora temos que ter em mente que muitos patriarcas tiveram muitos bens, assim como reis e juízes, e eles com certeza devem ter entrado no céu, um exemplo é Abrahão. Mesmo das pessoas que conviviam com Cristo haviam aquelas ricas, o próprio José de Arimatéia, que cedeu a tumba onde Cristo ressuscitou era rico e apenas se imaginarmos que mesmo tendo vivido com Cristo, respeitado tanto o Homem quanto sua mensagem ele foi deixado para fora do reino dos céus temos que concluir que essa passagem é muito extrema. Jesus estaria dizendo que a riqueza é um grande mal, não importa de onde ela veio?
Podemos responder isso com o segundo problema de tradução, a palavra agulha. A agulha é o nome dado às pequenas portas das cidades fortificadas para passagem dos animais das caravanas, utilizadas à noite apois o toque de recolher. Eram também utilizadas nos tempos de guerra, através das quais podia-se fazer o transporte de armas e comida. Essas agulhas são muito presentes ainda hoje nas muralhas da cidade antiga de Jerusalém.
Camelos com carga eram proibidos de passar por essas portinholas para evitar comercio e barulho durante o sono dos cidadãos. Além disso existe outro costume interessante, pelas portas principais das cidades eram comum que se passassem em sua maioria os mais bem quistos, ilustres e visitantes nobres. Pela agulha passavam os trabalhadores, o proletariado e os mercadores. Era como o elevador social e o elevador de serviço nos prédios hoje em dia. Além disso, mesmo durante o dia era realmente difícil se passar um camelo por elas.
Era necessário bater no camelo e fazê-lo abaixar e na maioria dos casos, tirar a carga dele para passá-lo. Os camelos de grande porte, raramente passavam. Mas mesmo assim alguns passavam.
Desta forma temos dois fatores culturais, a corda dos pescadores - camelo - e as portinholas nos muros - agulhas - que deveriam ser levadas em conta no momento de se traduzir um texto como este.
A idéia de um animal passando por um buraco de agulha nos mostra que Jesus disse que ninguém rico entraria no reinos dos Céus. Isso poderia ser usado para mostrar que uma pessoa que aceite Deus deve se livrar de seus bens materiais. Já uma tradução que levasse em conta os costumes gregos e judaicos poderia levar em conta que a riqueza não é o que impede alguém de entrar no reino dos céus, mas aquilo que foi o motivo da riqueza - o trabalho ou a cobiça?
Por si só, a tradução deste trecho tem uma tradução que muda de forma sutil um conceito que pode por um efeito de bola de neve se mudar a mensagem original.
Outro caso interessante de tradução é a famosa passagem da crucificação em que Jesus pergunta a Deus porque foi abandonado.
Em Mateus 27:45 e em Marcos 15:34 está registrado que depois de crucificado, Jesus, quando se aproximava a nona hora bradou/exclamou em voz alta: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?"
Esta é uma exclamação curiosa que confunde várias pessoas. Como Jesus na cruz poderia ter sido abandonado por Deus.
Algumas pessoas dizem que neste momento Cristo não estava perguntando a Deus porque havia sido abandonado e sim estava recitando os salmos, já que o Salmo 22:1 - Salmo de Davi para o músico-mor, sobre Aijelete Hashahar - se inicia com a frase: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?"
Este é um caso interessante da Bíblia, já que o Novo Testamento foi escrito quase todo em grego, mas contém palavras e frases que foram transliteradas do hebraico diretamente para o grego. Então a palavra שבקתני é transliterada para σαβαχθανι. Assim em Mateus temos: "Eli! Eli! lamma sabachthani" e em Marcos: "Eloi! Eloi! lamma sabachthani”. Em ambos os casos a palavra sabachthani tem o significado de abandonastes.
Agora eis o caso que surge quando olhamos para algumas outras bíblias, como a versão espanhola de Casiodoro de Reina, de 1569 impressa na América onde a palavra que Jesus usa é sabachtani e não sabachthani. Antes de prosseguir vamos nos lembrar do Texto Massorético e sua importância.
O alfabeto hebraico não possiu vogais. Por isso a letra Beth pode ter as cinco pronúncias Ba, Be, Bi, Bo e Bu dependendo da palavra em que encontra. É como se em português a palavra "Belo" fosse escrita Bl, apenas o B e o L. Se a pessoa está escrevendo sobre uma pessoa e lemos que a achavam Bl podemos deduzir que ela era considerada bela, mas e se pegamos apenas Bl e deixamos escrita no meio de uma folha de papel? Está escrito ali Belo, Bela, Bala, Balé, Bolo, Bula, etc? Não temos como saber. Por isso foram criados os sinais massoréricos, eram sinais utilizados pelos massoretas para saber se a letra B tinha som de Ba ou de Be. Os sinais massoréticos são uma série de pontos e traços que podem estar embaixo, no meio ou em cima de cada letra e o objetivo era registrar uma palavra da forma que havia sido pronunciada. Só ai temos um problema novamente, isso faz com que tradições antigas dependam da tradição oral.
Imagine agora a seguinte cena, um patriarca recebe de Deus a mensagem de que devemos nos amar uns aos outros. Essa tradição vai sendo transmitida oralmente, até o momento em que a colocam no papel, usando um alfabeto onde não existem diferenças claras entre a pronúncia das palavras. Agora imagine que dois judeus, um que conhece a tradição e outro que não conhece recebam a tarefa de pintar nos muros a mensagem de Deus, e dão para cada um uma parte da cidade para que espalhem o recado.
Um deles pega seu balde e tinta e sai escrevendo nos muros: Deus mandou que nos amássemos uns aos outros. O outro escreve nos muros: Deus mandou que nos amassemos uns aos outros. Você percebe a diferença que as duas mensagens possuem? De um lado da cidade as pessoas declarariam o amor, do outro sairiam se amassando.
E ai voltamos ao trecho da crucificação. Jesus dá o seu brado, estava cercado por Judeus, eles levam o recado adiante e o transmitem. Apesar dos evangelhos terem sido escritos originalmente em grego os termos eram judeus, tanto que as palavras de Cristo vem escritas no original e então lhe oferecem a tradução. Acontece que os manuscritos gregos trazem a transcrição: "Li’Li LMH ShBHhTh-NI", ou seja “sabachthani”, que tem como tradução "glorificas", e não "abandonastes". E assim por um erro mínimo, a compreensão da pronuncia de uma palavra ao invés do brado "Deus! Deus! O quanto me glorificas!" temos "Deus! Deus! Por que me abandonastes?".
Pensando nos dois brados, qual parece o mais lógico por ter sido dado por Jesus, que sabia que seria crucificado, que sabia que Judas o delataria, que pediu para Judas na última ceia para ir fazer o que devia, que quando surgiram os soldados romanos procurando por Cristo se adiantou a todos e disse "Sou eu!" mesmo antes de ter sido apontado por Judas, que quando teve várias chances de evitar seu destino na frente de cada juiz e governante romano que o interrogou permaneceu calado? Bem a realidade nem sempre segue o que julgamos ser lógico, mas temos ai outro exemplo de como uma simples tradução pode influenciar um texto que deveria ser um registro exato criando sentidos tão diferentes para uma mesma passagem.
21 - Mas não existe hoje uma Bíblia que seja aceita como a mais fiel aos textos originais, tipo uma Bíblia aceita por todos como a mais correta?
Não, a palavra de Deus recebeu várias versões durante a sua publicação e não apenas isso diferentes grupos tem diferentes Bíblias oficiais.

Para se ter uma idéia a igreja primitiva, formada pelos primeiros seguidores da mensagem de Cristo começou a apresentar mudanças na crença original desde o século V. Nos dias de hoje existem dezenas, se não centenas, de variações do cristianismo e cada um com diferenças fundamentais entre si.

Vamos olhar a uma breve linha do tempo da igreja para entender um pouco essas variantes. Com o Concílio de Efeso em 431 uma vertente se solidifica, os Noestorianos, que entre outras coisas acreditavam que Cristo era formado por duas pessoas distintas, uma humana e outra divina, dois entes completos e independentes. Essa doutrina surgiu na Antióquia e influenciou a Síria, ela foi proposta pelo monge Nestório por causa das disputas cristológicas que surgiram nos séculos III, IV e V. No Concílio de Éfeso criou-se uma disputa centrada fundamentalmente em torno do título com o qual se devia referir a Maria, se somente cristotokos (mãe de Cristo, a dizer, de Jesus humano e mortal), como defendiam os nestorianos, ou de theotokos (mãe de Deus, ou seja, também do Logos divino), como defendiam os partidários de Cirilo. Resolveu-se adotar como verdade de fé a doutrina proposta por Cirilo, concedendo a Maria o título de Mãe de Deus, e os nestorianos foram considerados hereges.

Até hoje é possível encontrar nestorianos, que se propagaram pela Ásia Central, chegando até a China, e durante algum tempo influenciaram os mongóis. Atualmente subsistem as igrejas nestorianas (conhecidas, de uma forma geral, como Igreja Assíria do Oriente) na Índia e no Iraque, Irã, China e nos Estados Unidos, além de alguns outros lugares onde haja migrado comunidades cristãs dos países citados. A Igreja Assíria do Oriente teve um papel fundamental na conservação de antigos textos gregos que foram traduzidos para o siríaco (um ramo do arameu). Mais tarde foram traduzidos para o árabe e no século XIII para o latim. Além da Igreja Assíria do Oriente, existem atualmente várias denominações cristãs que são também fortemente influenciadas pelo nestorianismo. Exemplos destas denominações, que foram fundadas muito após a Igreja Assíria, são os anabatistas, os cristadelfianos e os rosacrucianos.

Em 451 com o Concílio de Calcedônia surgiram as Igrejas não-calcedonianas - também conhecidas como antigas Igrejas orientais. Elas surgiram por se recusarar a aceitar a doutrina das "duas naturezas de Cristo", decretada pelo Concílio de Calcedônia e aceitada pelos católicos e ortodoxos. São acusadas de serem monofisitas - pelo fato de não aceitarem a doutrina das "duas naturezas de Cristo" (ou união hipostática), decretada pelo Concílio de Calcedônia (451) - apesar de se recusarem a aceitar esta classificação se descrevendo como miafisitas. Isto porque as Igrejas não-calcedonianas também acham que o monofisismo é herética.

Para equilibrar as doutrinas antitéticas do monofisismo e da união hipostática (ambas também não aceites pelos ortodoxos orientais), estas Igrejas defendem que em Jesus há a parte humana e a parte divina, mas que estas duas partes se unem para formar uma única e unificada Natureza de Cristo. Eles acreditam que uma união completa e natural das Naturezas Divina e Humana em uma só Natureza é autoevidente, de maneira a alcançar a salvação divina da humanidade, em oposição à crença na união hipostática (onde as Naturezas Humana e Divina não estão misturadas, porém também não estão separadas), promovida pelas atuais Igrejas Católica e Ortodoxa e esta crença defendida pelos não-calcedonianos chama-se miafisismo.

Atualmente, existe cerca de 79 milhões de ortodoxos não-calcedonianos que são organizados em seis Igrejas nacionais autocéfalas e em várias Igrejas autónomas associadas às Igrejas autocéfalas:


- Igreja Apostólica Armênia;
- Igreja Ortodoxa Síria;
- Igreja Ortodoxa Copta ou Alexandrina (egípcia ou etíope);
- Igreja Ortodoxa Etíope;
- Igreja Ortodoxa Indiana;
- Igreja Ortodoxa Eritréia

Apesar de serem autocéfalas, isto é, independentes umas das outras, estas Igrejas estão ainda em comunhão total entre si, partilhando as mesmas crenças e doutrinas cristãs.

No século XI acontece aquilo que ficou conhecido como o Grande Cisma do Oriente, que causou a separação entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Católica Ortodoxa.

As tensões entre as duas igrejas datam no mínimo da divisão do Império Romano em oriental e ocidental e a transferência da capital da cidade de Roma para Constantinopla no século IV.

Uma diferença crescente de pontos de vista entre as duas igrejas foi causada pela ocupação do oeste pelos invasores bárbaros, enquanto o leste permaneceu herdeiro do mundo clássico. Enquanto a cultura ocidental se foi paulatinamente transformando pela influência de povos como os germanos, o Oriente permaneceu desde sempre ligado à tradição da cristandade helenística. Era a chamada Igreja de tradição e rito grego. Isto foi exacerbado quando os papas passaram a apoiar o Sacro Império Romano no oeste, em detrimento do Império Bizantino no leste, especialmente no tempo de Carlos Magno. Havia também disputas doutrinárias e acordos sobre a natureza da autoridade papal.

A Igreja de Constantinopla respeitou a posição de Roma como a capital original do império, além disso existia a oposição do Ocidente em relação ao cesaropapismo bizantino, isto é, a subordinação da Igreja oriental a um chefe secular, como acontecia na Igreja de Bizâncio.

Uma ruptura grave ocorreu de 456 a 867, tocada pelo patriarca Fócio que sabia que contribuía para aumentar o distanciamento entre gregos e latinos e usou a questão do filioque - uma expressão latina que significa "e do Filho", que foi acrescentada pela Igreja Católica Romana ao credo para explicitar que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho enquanto a Igreja Ortodoxa entende que o Espírito Santo procedeu apenas do Pai - como ponto de discórdia, condenando a sua inclusão no Credo da Cristandade ocidental e lançou contra ela a acusação de heresia. Além disso ela desconsidera a liderança papal.

Aqui vai uma lista das jurisdições que formam a Igreja Ortodoxa:

- Patriarcado de Constantinopla
- Patriarcado de Alexandria
- Patriarcado de Antioquia
- Patriarcado de Jerusalém
- Patriarcado de Moscou
- Patriarcado da Geórgia
- Patriarcado da Sérvia
- Patriarcado da Roménia
- Patriarcado da Bulgária
- Igreja Ortodoxa de Chipre
- Igreja Ortodoxa Grega
- Igreja da Albânia
- Igreja da Sérvia
- Igreja Ortodoxa da Polónia
- Igreja das terras Checo-eslovacas
- Igreja Ortodoxa na América
- Igreja do Sinai
- Igreja da Finlândia
- Igreja da Ucrânia
- Igreja do Japão
- Igreja da China
- Igreja de Portugal

Já no século XVI acontece a Reforma Protestante, um movimento reformista cristão iniciado no século XVI por Martinho Lutero, que, através da publicação de suas 95 teses, protestou contra diversos pontos da doutrina da Igreja Católica, propondo uma reforma no catolicismo. Os princípios fundamentais da Reforma Protestante são conhecidos como os Cinco Solas:

1 - Sola fide: conhecida como Doutrina da justificação pela Fé, que afirma que é exclusivamente baseado na Graça de Deus, através somente da fé daquele que crê, por causa da obra redentora do Senhor Jesus Cristo, que são perdoadas as transgressões da Lei de Deus.

2 - Sola scriptura: significa "somente a escritur", é o principio no qual a Bíblia tem primazia ante a Tradição legada pelo magistério quando os princípios doutrinários entre estas e aquelas forem conflitantes. Na Reforma, não se rejeita a Tradição, ela continua a ser usada como legitimadora para qualquer assunto omitido pela Bíblia.

3 - Solus Christus: a "salvação somente por Cristo". Os protestantes caracterizavam os dogmas relativo ao Papa como representante de Cristo e chefe da Igreja sobre a terra, o conceito de mérito por obras e a idéia católica de um tesouro vindouro por causa das boas obras como uma negação de que Cristo é o único mediador entre Deus e os homens.

4 - Sola gratia: "Somente a Graça". A doutrina da salvação da Igreja Católica Romana seria uma mistura de confiança na graça de Deus e confiança no mérito de suas próprias obras, já a posição reformada é a de que a salvação é inteiramente condicionada a ação da graça de Deus, ou seja, só a graça através da regeneração unicamente promovida pelo Espírito Santo, em conjuto com a obra redentora de Jesus Cristo.

5 - Soli Deo gloria: "Glória somente a Deus", é o princípio segundo o qual toda a glória é devida a Deus por si só, uma vez que salvação é efetuada exclusivamente através de sua vontade e ação. Não só o dom da expiação de Jesus na cruz, mas também o dom da fé, criada no coração do crente pelo Espírito Santo. Os reformadores acreditavam que os seres humanos - mesmo santos canonizados pela Igreja Católica Romana, os papas, e as autoridades eclesiástica - não eram dignos da glória que lhes foi atribuída.

Lutero foi apoiado por vários religiosos e governantes europeus provocando uma revolução religiosa, iniciada na Alemanha, e estendendo-se pela Suíça, França, Países Baixos, Reino Unido, Escandinávia e algumas partes do Leste europeu, principalmente os Países Bálticos e a Hungria. A resposta da Igreja Católica Romana foi o movimento conhecido como Contra-Reforma ou Reforma Católica, iniciada no Concílio de Trento.

O resultado da Reforma Protestante foi a divisão da chamada Igreja do Ocidente entre os católicos romanos e os reformados ou protestantes, originando o Protestantismo.

Foi por causa da reforma que surgiram outros grupos como:

- Os Anabatistas
- Pentecostais
- Adventistas
- Batistas
- Calvinistas
- Presbiterianos
- Congregacionalistas
- Puritanos Separatistas
- Metodistas
- Luteranos
- Pietistas
- Anglicanos

E cada uma com uma visão próprio da Mensagem de Deus e a meneira de utilizá-la. Por exemplo para os católicos a Bíblia é a fonte de fé, mas devia ser interpretada pelos padres da Igreja, a tradição Católica também é uma fonte de fé, assim como o Magistério da Igreja. Para os Calvinistas a Bíblia é a única fonte de fé e deve ser examinada por qualquer um livremente. Já para os Anglicanos a Bíblia é a fonte principal de fé mas deve ser interpretada pela Igreja (tradição) e então ela pode ser examinada livremente.

Além desses grupos principais cristãos durante a história surgiram outros grupos cristãos também:

Os Restauracionistas: que usam doutrinas surgidas após a Reforma Protestante cujas bases derrogam as de todas as outras tradições cristãs, basicamente tendo como ponto em comum apenas a crença em Jesus Cristo. A maioria deles não se considera propriamente "protestante" ou "evangélico" por possuirem grandes divergências teológicas. Nesta categoria estão enquadradas a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, a Igreja Adventista do Sétimo Dia e as Testemunhas de Jeová, entre outras denominações. Quanto às Testemunhas de Jeová, embora afirmem ser cristãs, também não se consideram parte do protestantismo. As Testemunhas aceitam a Jesus como criatura, de natureza divina, seu líder e resgatador, rejeitando, no entanto a crença na Trindade e ensinando que Cristo é o filho do único Deus, Jeová, não crendo que Jesus é Deus.

O Cristianismo esotérico: que é a parte mística do cristianismo, e compreende as escolas cristãs de mistérios e sincretismo religioso. A este ramo pertence o Gnosticismo que é uma crença com raízes antecedentes ao próprio cristianismo e que tem características da ciência egípcia e da filosofia grega. O Rosacrucianismo também se enquadra nessa vertente sendo uma ciência oculta cristã que ressalta as boas ações por meio da fraternidade.

O Espiritismo: que algumas vezes é contestado como sendo uma vertente do cristianismo. Os espíritas não acreditam que uma pessoa ou ser, como Jesus Cristo, pode redimir "os pecados" de uma outra, contudo para a maior parte dos adeptos do espiritismo a obra de Allan Kardec constitui uma nova forma de cristianismo, ou então um resgate do cristianismo primitivo, que não inclui os dogmas adicionados pela Igreja Católica em seus diversos Concílios. Inclusive, um dos seus livros fundantes é denominado de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Esse livro apresenta uma reinterpretação de aspectos da filosofia e moral cristã, crendo em parte na Bíblia Sagrada.

O Rastafarianismo: também conhecido como movimento rastafári ou Rastafar-I (rastafarai) é um movimento religioso que surgiu na Jamaica entre a classe trabalhadora e camponeses negros em meados dos anos 20, iniciado por uma interpretação da profecia bíblica.

Como vimos cada um desses grupos, apesar de terem crenças cristãs em comum, possuem muitas divergências em crenças fundamentais, como a natureza de Cristo, o poder dado por Cristo a seus apóstolos, a fundação de uma igreja, etc... e isso acaba afetando a maneira como interpretam a Bíblia, os livros da Bíblia que são aceitos como realmente inspirados por Deus e a maneira como passam a Bíblia adiante.

E isso chega a afetar inclusive os textos de livros da Bíblia que são aceitos por todos. Para se ter idéia, alguns grupos acreditam que a Bíblia deveria ser não apenas passada a diante, mas ser atualizada com termos novos e atuais, um bom exemplo disso é a Bíblia Viva, editada no Brasil pela Editora Mundo Cristão. Ela foi considerada uma das traduções mais bem sucedidas do século XX pela revista Christianity Today. Kenneth N. Taylor ao invés de traduzir palavra por palavra resolveu traduzir "conceito por conceito". Para ele não fazia sentido um texto como: "A criança de peito brincará sobre a toca da áspide e o já desmamado meterá a mão na cova do basilisco" e assim temo o trecho hoje nesta Bíblia como: "Criancinhas brincarão perto de cobras e não serão picadas, mesmo que enfiem a mão nas suas covas".

Assim, mesma a Vulgata de Jerônimo, que já buscava unificar os textos sagrados, acaba sendo traduzida e adaptada para termos correntes e locais, assim em 500 d.C. já haviam mais de 500 traduções diferentes. E lembre-se ainda das versões da Vetus Latina e da Septuaginta que surgiam e eram usadas.

Assim cada grupo novo que surgia não apenas encorajava mudanças nos textos aceitos - os católicos tem em sua versão da Bíblia os Deuterocanônicos, os protestantes não, os gnósticos usam os textos apócrifos, alguns grupos, mesmo Cristãos, rejeitam o Novo Testamento, outros rejeitam o antigo Testamento já que Cristo veio trazer uma nova aliança e a antiga não era mais necessária.

Para se ter uma idéia do quanto essas traduções afetaram a Bíblia, Thomas Linacre depois de ler os evangelhos em grego e os comparar com a versão da Vulgata em 1490, disse: Ou isto (o texto grego original) não é o Evangelho... ou nós não somos cristãos. Mostrando a corrupção das traduções para o Latim. De novo, isso não se devia exatamente a um plano da igreja de manipular a Bíblia, mas à maneira com que a Bíblia atravessava as eras. Quando os antigos copistas reproduziam os livros, reescreveendo-os integralmente à mão eles deixavam notas de rodapé sempre que percebiam que haviam cometido algum erro, principalmente no caso de terem omitido uma palavra ou mesmo uma linha do texto original. Quando escribas de um período posterior começavam a copiar essas cópias muitas vezes deixavam essas notas de rodapé de lado, não corrigiam o texto do livro (seria um pecado enorme um mero copista incluir em uma reprodução algum texto que não estivesse no original) e também deixavam de lado as notas que apontavam os erros que eram percebidos durante o processo de reprodução.


A primeira versão em inglês da Bíblia foi feita por John Wycliffe em 1380, ele era um professor de Oxford, um estudioso e teólogo. Wycliffe era conhecido também por se opor aos ensinamentos da igreja, os quais ele acreditava serem exatamente o oposto daqueles pregados pela Bíblia. Com a ajuda de seus seguidores, chamados de Lollardes, e de seu assitente Purvey, associados a inúmeros copistas ele conseguiu produzir dúzias do manuscrito em inglês. Eles foram traduzidos direto das Vulgatas em latim, que era a única fonte da Bíblia disponível na época. O Papa ficou tão furioso com essa ousadia que 44 anos após a morte de Wycliffe mandou desenterrar seus ossos, esmagá-los, então moê-los para atirar o que restasse deles no rio.

Ainda no século XV surge uma versão Hussita da Bíblia e em 1478 uma versão em catalã escrita com o dialeto de Valência. Todas elas versões proibidas pela igreja católica.

Em 1496 John Colet decide traduzir partes do Novo Testamento do Grego para o inglês para repassá-lo a seus alunos e mais tarde para os freqüentadores da Catedral de São Paulo em Londres. Nesta época as pessoas tinham tamanha ânsia em ouvir a Palavra do Senhor em sua língua nativa – já que eram muito poucos os que entendiam Latim – que em seis meses o público que entrava na Igreja para ouvir a missa ultrapassava as 20.000 pessoas e um número igual se acotovelava do lado de fora tentando entrar, comparando com os dias de hoje apenas 200 pessoas costumam estar na igreja presente para o culto e a grande maioria é composta por turistas.

Em 1516 a Froben Press publicou uma versão em grego do Novo Testamento editado por Desiderius Erasmus, que reconstruiu o texto grego recombinando vários manuscritos bizantinos com traduções do texto da Vulgata, do latim para o grego novamente, quando os textos que tinha em mãos não estavam completos. Essa sua versão da Bíblia possuiu 4 edições.
Texto extraído de várias postagens da Internet, com alterações feitas por Edson de Souza Couto.